Você se diz toda a verdade?

Você se diz toda a verdade?

Última atualização: 24 maio, 2015

Desde que nascemos estamos tomando decisões. Por incrível que pareça, decidimos desde muito cedo: decidimos se vamos pegar um brinquedo ou outro, se iremos tomar sorvete de um sabor ou de outro… resumindo:  como adultos pensantes e que sentem, somos feitos da soma e interação de cada uma de nossas decisões.

Desde que viemos ao mundo também vamos nos “contando as coisas”. Às vezes, a importância do que acontece está em como o contamos, pois somos os “narradores” da nossa própria vida.

Nossa própria sobrevivência nos leva a “distorcer” a realidade, de modo que geramos algo parecido a “amortecedores” mentais, que fazem com que a nossa percepção daquilo que nos rodeia e de nós mesmos seja “digna, fácil, ou suportável”.

A negação da verdade

Uma destas distorções se chama negação, sendo um dos mecanismos clássicos de defesa:  não enfrentamos conflitos ou realidades complexas negando diretamente que existam, que são importantes ou que têm algo a ver com nós mesmos. Vamos rejeitando aspectos da realidade de que não gostamos. O “truque mental” e perigoso da negociação é que não percebemos o que está por trás dela.

Vivemos enfrentando conflitos emocionais e ameaças que podem surgir de uma forma interna ou externa, ao mesmo tempo em que nos negamos a reconhecer determinados aspectos doloridos da realidade que nos rodeia. No entanto, os outros são capazes de ver estes aspectos.

Existem muitas formas de derivação de conduta da negação; nos casos mais rígidos, temos as condutas perigosas ou o consumo de substâncias: a maioria das pessoas que sofrem de alcoolismo negarão que padecem desta doença, e sempre afirmarão que tem o controle. A priori, os outros entendem que está mentindo e que nos oculta a verdade, mas “está mentindo e ocultando a verdade de si mesmo”, por isso também não a conta para os outros.

No exemplo do consumo de substâncias, podemos ver claramente esse mecanismo; mas o que acontece quando a negação também é colocada em prática nas relações interpessoais? Do mesmo jeito que nas dependências, a negociação nos impede de ver a realidade, não nos deixa ser livres e nos leva inevitavelmente a estabelecer vínculos de caráter dependente.

Mas, por que nego?

Na maioria das vezes, nos negamos coisas das nossas relações, especialmente do casal, por emoções ou crenças fortemente arraigadas e enraizadas dentro de nós mesmos, como são o medo do abandono e a baixa autoestima. Além disso, no processo da “paixão”, podemos sucumbir a um potente modelo de idealização do parceiro: ao negar aquelas condutas que me ferem, vou me envolvendo num vínculo potencialmente tóxico enquanto “me conto” a realidade da pessoa que tenho diante de mim de forma idealizada, o que fará reduzir o impacto daquelas condutas danosas que não me beneficiam. Assim, estou construindo a base de um vínculo emocional tão potente quanto dependente.

Como sei se estou me enganando?

O nosso corpo é surpreendentemente sábio, nossa natureza é mágica e por isso reagimos frente aos estímulos externos de um modo físico: todas as emoções se manifestam a um nível orgânico, seja a pena, a raiva, a alegria, a tristeza, a ansiedade…

Existem frases ou comportamentos do nosso companheiro que provocam reações negativas em nosso organismo:  temos que ouvir o que o nosso corpo nos diz.

Podemos tomar como exemplo a pena: a maioria dos vínculos dependentes se caracteriza por emoções como a pena, a lástima. Se em uma relação nova estivermos sentindo pena, não iremos perceber o resto das coisas que vem junto com essa lástima, e por isso as negamos. Todos conhecemos as frases: “é que me dá pena”, “não quero deixá-lo sozinho, ele não tem amigos, me dá pena” ou “eu sei que ela não me trata bem mas é que está sofrendo por outras coisas, me dá muita pena, é uma boa pessoa”.

A pena não é amor, a lástima não leva à paixão, leva ao estabelecimento de laços dependentes, nos leva a sentir “que precisam de nós” ou “que precisamos”… os casais saudáveis se amam, se potencializam… mas não precisam um do outro. Estão juntos porque querem, não porque precisam.

A necessidade surge quando somos dependentes. A dependência leva ao isolamento e à falta de recursos pessoais, portanto, longe de nos ajudar a solucionar as carências prévias que tínhamos sem resolver, como a baixa autoestima ou o medo da solidão, ela as multiplica.

Se depositarmos toda a fonte de satisfação no outro, corremos o grave risco de um caos emocional, pois o nosso humor sempre dependerá do humor do nosso parceiro, nossas decisões terão que ser validadas ou aprovadas pelo nosso companheiro… Quanto mais dependemos, mais inferiores nos sentimos e menos recursos pessoais próprios teremos, portanto será muito mais difícil quebrar esses laços “tóxicos”, não apenas pela sensação de pena mas porque sentimos que estamos sozinhos e que não podemos “ser” sem o outro. O pior, a toda esta receita vamos agregando um ingrediente terrível:  a culpa.

Podemos identificar que estamos nos enganando quando:

– A pessoa amada nos faz sentir pena, e nos agarramos a ela para justificar seus comportamentos.

– A pessoa amada nos faz sentir ciúmes, e para justificar o nosso ciúmes culpamos a nós mesmos.

– A pessoa amada nos faz sentir inferior; detectamos que nossa roupa, nossos comentários, nossas habilidades não lhe agradam e ela se envergonha de nossas reações.

– A pessoa amada nos limita o tempo e o espaço vital próprios, gerando uma sensação de fardo e/ou ausência de relações sociais satisfatórias.

Se eu não me enganar, ainda poderei amar?

Obviamente a resposta é sim.  A pena não é a mesma coisa que a empatia; os ciúmes não são a mesma coisa que a sensação de conexão íntima que estabelecemos com nosso ser amado; sentir-se inferior não é o mesmo que ter pontos de vista diferentes; e compartilhar atividades com a pessoa que amamos não significa que ela tenha que ocupar todo o nosso tempo.

Não escolhemos um dono, nem um filho, nem um pai ou mãe, não escolhemos um chefe ou um empregado… escolhemos a um companheiro de vida. Quanto mais nos enganamos, mais longe estamos do amor puro e incondicional. A verdade é necessária para ser feliz; aceitando a realidade, poderemos também evoluir em nossas relações, tal como resume Carl Jung: “O que você nega, o submete; o que você aceita, o transforma”.


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