"As Linhas Tortas de Deus": paranoia ou realidade?

Alice Gould está mentalmente doente? Ou ela é vítima de uma conspiração para deixá-la em um sanatório enquanto ela está sã? A adaptação cinematográfica do famoso romance de Torcuato Luca de Tena é um enigma fascinante e cheio de engenhosidade que vale a pena analisar.
"As Linhas Tortas de Deus": paranoia ou realidade?
Valeria Sabater

Escrito e verificado por a psicóloga Valeria Sabater.

Última atualização: 12 dezembro, 2023

Dizem que Torcuato Luca de Tena fingiu ter uma psicose depressiva para ser internado em um hospital psiquiátrico. Ele conseguiu e passou cerca de 18 dias no Hospital Nuestra Señora de la Fuentecilla, no México, onde havia cerca de 800 residentes. No final, eles o “pegaram” e descobriram o paciente são, mas o jornalista experiente conseguiu a história de sua vida.

Essa experiência lhe permitiu conhecer o complexo microuniverso dos centros de saúde mental na década de 1970, bem como o louvável trabalho de médicos, enfermeiros e cuidadores. Profissionais que buscam, acima de tudo, “endireitar” as linhas tortas de Deus. Dessa experiência, o jornalista escreveu um livro, essência da antipsiquiatria, com o qual dignifica todo o grupo, inclusive os próprios pacientes.

Agora, temos uma nova adaptação para o cinema que, depois de passar pelos cinemas, chega ao catálogo da Netflix para se tornar um dos conteúdos mais vistos. Quem busca uma correspondência milimétrica do romance com todos os seus personagens e narrativas no filme dirigido por Oriol Paulo não a encontrará. Contudo, o resultado final não decepciona.

“Personalidades particularmente requintadas são mais vulneráveis do que as grosseiras, da mesma forma que uma xícara é mais frágil quanto maior for a qualidade da porcelana.

-As Linhas Tortas de Deus-

Cena das linhas tortas de Deus
O filme As Linhas Tortas de Deus nos mergulha em um labirinto de verdades e mentiras.

Do livro ao cinema: “As Linhas Tortas de Deus”

Quem já viu o trabalho do roteirista e diretor de cinema Oriol Paulo conhece sua inegável maestria para os thrillers. Sua jogabilidade requintada e reviravoltas na história nunca deixam de confundir e manter o espectador em alerta. Exemplos disso são títulos como Um Contratempo, O Corpo, Os Olhos de Júlia, Sequestro ou Durante a Tormenta.

As Linhas Tortas de Deus (2022) foge um pouco desse pano de fundo da psiquiatria que foi abordado com detalhes e inegavelmente sólido no livro. Além disso, sentimos falta de personagens secundários extraordinários e de uma maior contextualização psicológica. No entanto, os tempos e dinâmicas no cinema são diferentes, e neste caso o filme foca-se exclusivamente no seu eixo central, na sua protagonista feminina.

Da sua mão, e através da sua mente e enquadramentos labirínticos, mergulharemos numa linha frágil em que será difícil distinguir a sanidade da loucura, a verdade da inventividade.

“Alice se parabenizou por encontrar uma definição exata para seu estado de espírito: uma tristeza silenciosa.”

-As Linhas Tortas de Deus-

Alice Gould, uma mulher em busca da verdade

O filme começa com uma visão aérea de uma floresta. É seguida por uma estrada na qual vemos um mustang vermelho em que viaja uma mulher elegante. Essa abertura nos lembra muito a narrativa visual de Alfred Hitchcock. Nesse carro, viaja a protagonista, Alice Gould, uma investigadora particular que foi contratada para investigar um suposto suicídio ocorrido em um hospital psiquiátrico.

Ela entra na referida instituição voluntariamente fingindo paranoia. Durante suas investigações, ela contará com a ajuda de um dos internos para esclarecer se os dirigentes do centro foram os responsáveis pelo assassinato. Não demorou muito para nos conectarmos com ela. Em Alice, destacam-se sua sagacidade, sua determinação e sua notável inteligência.

Porém, logo começam as dúvidas sobre sua identidade e sua sanidade… Após uma série de incidentes gravíssimos, a protagonista decide que é hora de deixar o centro. Para sua surpresa, os responsáveis pelo sanatório recusam. Ela é realmente uma investigadora contratada para solucionar um crime? Ou ela é outra paciente vítima de seus próprios delírios?

Entre a loucura e a sanidade: a eterna fragilidade da verdade

O filme As Linha Tortas de Deus joga magistralmente com linhas do tempo e reviravoltas no roteiro. Por um lado, ficamos presos na eterna dúvida se Alice é quem diz ser ou se é apenas mais uma moradora do próprio hospital psiquiátrico. Seu confronto com o médico Samuel Alvar põe em risco sua sanidade e credibilidade.

Por outro lado, somos testemunhas de assassinatos, fugas de presidiários, incêndios e a possibilidade de Alice ser vítima de um complô para mantê-la presa… atmosfera, de infinitos flashbacks e flashforwards, de diálogos reveladores e personagens ambíguos que nos fazem mudar de opinião a cada momento.

A verdade nesse filme é frágil e uma miragem ao mesmo tempo. Quase simula um castelo de cartas que desaba em um instante para, em breve, erguer-se novamente com mais torres e novas cartas. De certa forma, é o próprio reflexo de uma mente doente em que todas as possibilidades existem ao mesmo tempo e nenhuma é sólida o suficiente.

A adaptação de “As Linhas Tortas de Deus” é um thriller psicológico paciente e atencioso que recompensa qualquer espectador que se diverte com reviravoltas no roteiro e finais abertos.

Cena das linhas tortas de Deus
A verdade está sempre em questão no filme As Linhas Tortas de Deus, daí o seu charme e desafio.

Uma virada inesperada

O romance As Linhas Tortas de Deus foi inesquecível, mas o filme que a Netflix nos traz é aceitável. Não atinge o clímax e a maestria da narrativa divina de Torcuato Luca de Tena. No entanto, não podemos menosprezar o fato de que, como produto cinematográfico, o que Oriol Paulo conquistou é puro entretenimento.

Barbara Lennie no papel de Alicia Gould é de longe a característica mais notável do filme. Sua solvência interpretativa é hipnótica e, graças a ela, as mais de duas horas de filme se sustentam. Um tempo excessivo, sem dúvida. Notável é a virada proverbial que seu diretor nos deixa logo no final. Uma peça inesperada, um fecho que quebra tudo e mais uma vez distancia do romance.

O fato de continuarmos sem saber se o protagonista é moradora ou vítima de uma armadilha serve como um spoiler inevitável. Se toda a produção exige um esforço mental do espectador, a sua resolução convida necessariamente a uma nova reflexão. Assim que supomos que Alice está prestes a ser liberada do asilo, um rosto familiar aparece…

É o Dr. Donadio, que ela viu como o Dr. García del Olmo, o homem que a contratou para investigar o suicídio de seu filho. Uma figura que, ao vê-la, faz uma pergunta enigmática… “Olá Alice, em que enrascada você se meteu desta vez?”

Cinema e hospitais psiquiátricos, um verdadeiro clássico

As Linhas Tortas de Deus é um filme que exala a essência cativante do filme noir. Da mesma forma, apresenta maravilhosas reminiscências de outros títulos como Ilha do Medo. Se Martin Scorsese nos trouxe um Leonardo DiCaprio que beirava a lucidez com a loucura em um centro psiquiátrico, Oriol Paulo fez o mesmo com Bárbara Lennie.

Os filmes que as instituições de saúde mental usam para nos mostrar a fragilidade da mente humana são múltiplos e a maioria deles são excepcionais. Lá temos desde Memórias Secretas a Um Estranho no Ninho. Todos são homenagens a pessoas que sofrem, a homens e mulheres que, como disse Luca de Tena, são aquelas linhas tortas da vida que têm história.

Essas pessoas não são loucas, não são marginalizadas da nossa sociedade. São pessoas sofredoras, homens e mulheres cativos de suas armadilhas mentais. Para entendê-las, é preciso cavar camada por camada, mergulhar em suas histórias, fazer um esforço para se conectar com seus universos para vislumbrar seus mundos de dor e caos. O filme de Oriol Paulo é um bom exercício para isso.


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