Um Corpo Que Cai, a psicanálise transformada em cinema

'Um Corpo Que Cai' é um dos melhores filmes que o cinema já produziu. Um longa em que o diálogo não importa tanto quanto a imagem ou os símbolos. Tudo está colocado perfeitamente, a música, os espaços... Neste artigo, descobrimos por que este é considerado “o melhor filme de todos os tempos” por tantas pessoas.
Um Corpo Que Cai, a psicanálise transformada em cinema
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 22 dezembro, 2022

Reunir em um único artigo tudo que Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock, envolve é quase impossível. O filme pode dar espaço a uma análise muito profunda. Desde os movimentos da câmera até os figurinos, passando pela psicanálise, tudo é importante neste longa.

É por isso que Hitchcock ganhou o apelido de “mestre do suspense”, e Um Corpo que Cai o de melhor filme de todos os tempos, ou pelo menos é o que pensam os críticos da prestigiosa revista Sight & Sound.

Na verdade, até relativamente pouco tempo, a melhor posição no cinema era ocupada por Citizen Kane (Orson Welles, 1941). Mas a Sight & Sound decidiu reconsiderar essa classificação e colocou Um Corpo que Cai na primeira posição.

A verdade é que o filme de Hitchcock tem todos os ingredientes para ser um grande filme e consegue conquistar tanto a crítica quanto o público. No entanto, seu sucesso não foi imediato. O filme foi conquistando seu êxito ao longo do tempo para finalmente se tornar atemporal.

No ano de 2018, esta joia do cinema completou 50 anos, mas continua tão impecável e surpreendente quanto na estreia. Um Corpo que Cai combina suspense com paixão, tragédia grega com problemas psicológicos, cores e formas…

Baseado no romance Cold Sweats: From the Dead (Pierre Boileau e Thomas Narcejac), Um Corpo que Cai é um filme que vai captar a sua atenção até ao fim, brincando majestosamente com o suspense.

O jogo psicológico em Um Corpo que Cai

Hitchcock adorava brincar com nossas mentes, introduzindo elementos importantes da psicanálise em seus filmes, como fez em Um Corpo que Cai. O seu cinema é puramente psicológico, e ele consegue manipular os fatores com sucesso para surpreender o espectador.

O próprio diretor disse que a chave do suspense é dar a informação ao espectador, ou seja, o contrário do que normalmente se faz.

Escadas para o porão

Uma fórmula seria brincar com a intriga até o fim. Entretanto, é especialmente difícil manter esse mistério e a atenção muitas vezes se perde no caminho.

Introduzir de surpresa certas informações privilegiadas configura um estímulo para o espectador, resgatando sua atenção e curiosidade com essa estratégia.

Em Um Corpo que Cai, o mistério é palpável desde o início, encenado de forma especial pela misteriosa personagem Madeleine. Durante a primeira metade do filme, pensamos ter visto um fantasma, uma possessão ou algum tipo de manifestação paranormal.

Como ao acordar de um sonho do qual mal nos lembramos, os espectadores terão que tentar dar uma explicação lógica para essa personagem. Este é um dos desafios mentais que o filme nos propõe.

John Ferguson inicia uma paixão obsessiva por Madeleine que o levará à loucura e à tragédia. Essa tensão se mantém durante os primeiros minutos de filmagem, mas Hitchcock já deixa algumas pistas que nos levam a pensar que a misteriosa Madeleine esconde outra coisa. Em breve, conheceremos Judy, e aqui entra em cena a questão do duplo. Essa questão tem sido abordada pela literatura e pela psicanálise, e também está presente em Um Corpo que Cai.

De alguma forma, sabemos que algo sinistro e obscuro está acontecendo e, sem esperar muito, o mistério se revela: Judy e Madeleine são a mesma pessoa.

Cena de 'Um Corpo Que Cai'

Hitchcock revelou o segredo no meio da trama e, ao contrário do que poderia parecer, a tensão aumenta. Como isso deve ser resolvido? Como John vai agir quando descobrir o que já sabemos? É aí que reside o poder do suspense.

O público faz parte da trama por possuir as informações que podem mudar tudo, e precisa esperar para chegar ao fim da questão. O jogo com espelhos e aparências, muitas vezes emoldurado pelo perfil de Madeleine/Judy, aumenta essa tensão, e vemos como John mergulha num romantismo quase necrofílico repleto de voyeurismo.

O misticismo também aparece na primeira parte, portanto, essa sensação de estar diante de algo paranormal é aumentada.

Os problemas do protagonista se manifestam desde o início; um episódio traumático em sua vida vai desencadear acrofobia e vertigem. John é conhecido por vários nomes, o que parece indicar um certo problema com a sua identidade.

Ao mesmo tempo, a sexualidade do protagonista está muito presente no filme. Tudo parece indicar que John não consegue ser íntimo com as mulheres. Vários símbolos fálicos aparecem, mas também alguns relacionados ao feminino.

Dessa forma, o filme Um Corpo que Cai se apóia na simbologia da psicanálise e se configura como uma espécie de devaneio envolto em uma trama entre o romântico e o sinistro.

Elementos visuais

Como já adiantamos, tudo no filme Um Corpo que Cai é perfeitamente calculado e os elementos visuais são dignos de um estudo da psicanálise. A vertigem e a acrofobia se manifestam nos próprios movimentos da câmera e até mesmo no cenário escolhido: a cidade de São Francisco.

São Francisco é uma cidade muito vertical, cheia de curvas, que podemos seguir no longo percurso que aparece no filme. Essa geografia alimenta ainda mais as sensações de movimento, de vertigem.

As formas em espiral acentuam essas sensações, a tontura sofrida pelo protagonista. Já nos créditos, espirais hipnóticas nos dão as boas-vindas a essa sinistra aventura. A espiral também aparece na escada, no arco de Madeleine, nas flores, etc. Até o beijo entre os protagonistas dá uma volta de 360º – isso foi conseguido colocando os atores em uma plataforma giratória.

Numa das cenas mais emblemáticas, foi utilizado um travelling compensado ou retrozoom, embora o efeito também tenha ficado conhecido como “efeito vertigem” graças ao filme. Este movimento da câmera combina um zoom para trás ou para a frente com uma viagem na direção oposta. Dessa forma, é possível recriar uma sensação de tontura e até de desconforto.

Um Corpo Que Cai, a psicanálise transformada em cinema

Em Um Corpo que Cai, vemos pelos olhos do protagonista como aquelas escadas se tornam absolutamente aterrorizantes e vertiginosas. A espiral proporciona movimento, progressão, mas também está associada à interpretação de Jung, que a relacionou a um caminho sinuoso em direção à complexidade do ser humano.

A morte e o onírico

As fotos e pinturas que aparecem em Um Corpo que Cai também são reveladoras. Quando conhecemos Gavin Elster, o vilão manipulador do filme, o vemos rodeado de pinturas. Essas pinturas transmitem poder e, se as observarmos com atenção, perceberemos que em muitas delas aparecem cavalos. Ou seja, eles podem ser associados a um símbolo de dominação e manipulação.

A pintura da falecida Carlota Valdés que Madeleine observa funciona como uma espécie de espelho, ao mesmo tempo que supõe uma objetificação. Enquanto Madeleine olha para a pintura, John olha para Madeleine como se ela fosse uma pintura, um objeto. John se apaixonou por um fantasma, alguém que nada mais é do que uma aparência adorada, uma idealização que se torna ainda mais evidente no momento em que tenta transformar Judy em Madeleine.

Esse cenário nos remete a Pigmalião e ao próprio Petrarca em sua religio  amoris para com sua amada Laura. Ou seja, John está envolvido em uma situação de paixão irreprimível, uma paixão exagerada por sua amada “morta”. Ele aproveita a sua servidão em relação à sua amada, assim com sua penitência subsequente.

A cor também desempenha um papel fundamental. O vermelho e o verde estão presentes em todo o filme e evocam o obsceno, o proibido, o sexual, mas também o onírico. O momento-chave ocorre quando Judy, vestida e penteada como Madeleine, irrompe na sala com uma espécie de névoa e tons esverdeados que a cercam criando uma imagem fantasmagórica. É como se Madeleine tivesse ressuscitado, como se estivéssemos num sonho.

A reminiscência também não escapa: aquele momento mágico em que o protagonista vê o medalhão e, por fim, lembra e compreende a situação. Finalmente, em outra cena fantasmagórica, a salvação acompanhará a morte: o fim dos problemas é personificado pela morte de Judy.

Naquele momento, todo o mistério se desvela, o protagonista não parece mais acrofóbico e desconfortável no alto, a câmera está parada, não há mais movimento. É uma imagem estática e gelada, o medo desapareceu.

Assim ocorre o despertar, um despertar literal, como acordar de um pesadelo. John, por fim, faz contato com a realidade e a cura ocorre. Em última análise, Um Corpo que Cai é um filme imortal, que continuará a deixar os espectadores sem palavras, cativando e envolvendo-os em um espaço único de sonho.


Este texto é fornecido apenas para fins informativos e não substitui a consulta com um profissional. Em caso de dúvida, consulte o seu especialista.