Black Mirror: Bandersnatch, a distopia somos nós
Quando pensávamos que a série britânica Black Mirror já tinha nos ensinado tudo, chega Bandersnatch, o filme interativo da Netflix que parece estar deixando os usuários da plataforma loucos.
Black Mirror é conhecida por apresentar questões que convidam à reflexão sobre o presente, sobre as novas tecnologias e o impacto que elas têm em nossas vidas. Nos envolve em distopias que poderiam ser reais em poucos anos.
No entanto, com Bandersnatch, deu-se um passo além: a barreira do espectador como conhecemos normalmente foi rompida. Fomos introduzidos no filme, sendo obrigados a tomar decisões que mudam o destino do personagem.
Bom, é verdade que, como filme, talvez não seja tão bom como era esperado, perdendo alguns pontos. Tampouco se destaca dentro do que Black Mirror representa e, certamente, quando a novidade passar, não será visto como um dos grandes acertos da série. No entanto, não existem dúvidas de que o interesse despertado foi enorme.
O debate já está aberto, Black Mirror voltou a abri-lo, voltou aos holofotes e, dessa vez, decidiu se reinventar, de certa forma. Após quatro temporadas (com poucos episódios cada), houve quem pensasse… E agora? Será que a série vai continuar sendo surpreendente? Só de observar tudo o que Bandersnatch deu o que falar, a resposta para essa pergunta é sim, Black Mirror continua muito viva.
AVISO: O artigo contém spoilers.
O que é um filme interativo?
Antes de aprofundar as questões apresentadas por Bandersnatch, a primeira coisa que devemos fazer é entender como o filme funciona e por que estamos falando dele como um filme interativo.
Quando falamos de algo interativo, entendemos que deve haver um diálogo e que, de alguma forma, o receptor pode dar uma resposta. Se pensarmos nos livros, como leitores, nossa interação é limitada pelo próprio formato, e o mesmo aconteceria no cinema.
Bom, é verdade que existem algumas obras literárias ou cinematográficas que, de uma forma ou de outra, envolvem o receptor e fazem com que ele participe da obra. Um exemplo disso pode ser visto em alguns filmes, como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen, como o romance Névoa, de Miguel de Unamuno, ou em obras teatrais como ElTragaluz de Buero Vallejo. Nos exemplos anteriores, a quarta parede é rompida, ou seja, apela-se diretamente ao espectador ou leitor.
Um romance muito inovador nesse aspecto é O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. Nele damos um passo além, o leitor é fundamental inclusive na hora de decidir a ordem na qual o livro será lido.
Cortázar propõe seguir uma ordem tradicional, em outras palavras, linear, começando no primeiro capítulo e indo até o último; ou, do contrário, seguir uma “desordem” que começaria no capítulo 73 e para o qual o autor oferece um guia.
Cortázar foi completamente inovador ao propor este tipo de leitura que, especialmente nos anos 80, tomaria um novo rumo. E é precisamente nos anos 80 que Bandersnatch se ambienta, se mostrando como um livro do estilo “escolha a sua própria aventura” no qual os leitores vão decidir o caminho tomado pela história.
Apesar de Black Mirror parecer ser sempre futurista, Bandersnatch, na verdade, aconteceu no passado, utilizando os primeiros videogames e livros antigos como inspiração.
O cinema também deu alguns passos em direção à interação. No começo de suas carreiras, alguns cineastas como George Méliès apareciam durante algumas de suas projeções para dialogar com o público.
Da mesma forma, a interação também pode surgir de forma espontânea, como é o caso de The Rocky Horror Picture Show. Este último é um caso verdadeiramente peculiar e é o público que, durante décadas, decidiu se disfarçar e interagir com o filme durante as projeções. Outro exemplo seriam os filmes 3D que, apesar de não provocarem diálogo, nos fazem, de certo modo, participar.
Bandersnatch e a tomada de decisões
Bandersnatch nos apresenta Stefan, um jovem que tem como missão desenvolver um videogame baseado em seu livro favorito, que segue o estilo de “escolha sua própria aventura”. Vamos conhecendo Stefan pouco a pouco, e somos nós que determinamos o que vamos ver a seguir; isso é o que, em teoria, o filme propõe.
Digo em teoria porque, na verdade, o filme tem várias limitações e, às vezes, toma as decisões por nós mesmos. E é aí que perde e, ao mesmo tempo, Bandersnatch acerta. Perde alguns pontos porque é entediante voltar novamente ao ponto de partida, mas acerta ao lançar uma mensagem clara e direta ao espectador.
As decisões acontecem desde escolher o café da manhã de Stefan a decidir se ele assassina ou não o seu pai, ou seja, vai do mais simples ao mais complexo. O discurso é inovador porque as decisões são tomadas rapidamente, seguindo o ritmo do filme, algo que nos lembra muito dos videogames – não podemos nos esquecer que o videogame é o fio de ligação.
Algumas das nossas decisões não dependem de nós. Isso acontece, por exemplo, quando Stefan se encontra com Colin e ele lhe oferece LSD. Se decidirmos não consumir a droga, Colin vai colocá-la em nossa bebida e olhará para a câmera dizendo que decidiu por nós.
As nossas decisões estão limitadas? Essa dúvida é solucionada novamente por Colin durante a alucinação por LSD, dizendo que o governo nos controla, que tudo é absolutamente manipulado e que, definitivamente, não somos mais do que escravos. Apesar do discurso desanimador de Colin, a verdade é que ele se conectou conosco e está nos fazendo duvidar tanto do filme quanto das nossas próprias decisões cotidianas.
Bandersnatch: nós somos o futuro
O mais interessante acontece quando Stefan começa a ter consciência de que alguém externo está controlando suas ações, ou seja, nós, os espectadores da Netflix. Neste momento, acontece a ruptura com a quarta parede, Stefan vai nos perguntar o que está acontecendo, quem o está controlando e nós, é claro, daremos a resposta.
Uma das opções de resposta que pode aparecer é: Netflix, algo que é verdadeiramente interessante. Ao ter consciência, Stefan começará a nos desobedecer.
A genialidade aparece quando ele diz para a sua psicóloga que alguém do futuro está controlando as suas ações através de algo chamado Netflix. É interessante porque rompe com a distopia tradicional, aquela de que o futuro é aterrador. Desta vez, a distopia é vivida por Stefan e o futuro somos nós.
A distopia já está aqui, em nosso presente, já chegando ao futuro horrível no qual pensávamos que nunca íamos chegar. Este jogo com o espectador, além de ser um bom entretenimento, leva a um importante discurso e reflexão. Novamente, Black Mirror utiliza o nosso presente para que pensemos sobre ele.
De alguma maneira, esta cena (especialmente quando ele se pergunta o que é Netflix) lembra bastante Matrix, um filme no qual a realidade é simulada por um programa, nos fazendo duvidar do “real”.
Da mesma forma, nos remete à já mencionada Névoa, obra na qual Unamuno consegue fazer com que o leitor questione sua própria realidade. Após ver Bandersnatch e testar diversos finais, abre-se diante de nós uma infinidade de questões.
Bandersnatch é um experimento verdadeiramente interessante: a forma de consumo mudou e Black Mirror quis tirar proveito disso experimentando. Nós brincamos com Bandersnatch, ou foi o próprio filme que brincou conosco? Ao mesmo tempo, ele nos propõe uma nova forma de narrativa cinematográfica, uma nova forma de ser espectador.
Definitivamente, embora Bandersnatch não seja uma jóia cinematográfica e esteja muito lento no encontro entre cinema e videogame, é uma experiência de entretenimento que, se soubermos compreender e aproveitar, nos deixará com uma sensação estranha. Como já é costume em Black Mirror, Bandersnatch nos convida a refletir.
“O que é Netflix?”.
– Bandersnatch-