Clube da Luta, destruindo a contemporaneidade

Clube da Luta, destruindo a contemporaneidade
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 29 dezembro, 2022

O século XX foi um século de mudanças, um século marcado por guerras em seu início e por um avanço tecnológico frenético em seu final; avanço que levou à sociedade de consumo que conhecemos atualmente. Clube da Luta (David Fincher, 1999) encerrou este século e marcou o início do século XXI de forma selvagem, brutal e pouco esperançosa. Cada frase, cada cena, cada golpe… tudo, absolutamente tudo o que apresenta, gera uma reação no espectador.

Clube da Luta supõe um dura crítica à sociedade, um duro golpe para muitos de nós que, em algumas ocasiões, nos sentimos identificados com o personagem sem nome que Edward Norton encarna de maneira magnífica. Muitos criticaram o filme, muitos se sentiram desconfortáveis, ​​e outros viram nele uma obra-prima que foi o toque final perfeito para o final do século XX.

Não, não é um filme para assistir tranquilamente comendo pipoca, nem um filme que desperta o sentimentalismo mais forçado do cinema; é um filme que desperta, no sentido estrito da palavra, o espectador. Já nos créditos somos alertados de que vamos assistir a uma autêntica punhalada em nosso ego, em nosso estômago.

O personagem principal, cujo nome é não mencionado, é o fiel reflexo de um homem vítima do tempo em que vive: escravo de seu trabalho, sofre de insônia e desperdiça seu tempo comprando objetos da IKEA. Seu único respiro é encontrado recorrendo a terapias de grupo nas quais pessoas que sofrem de doenças como câncer se reúnem para tornar sua situação mais suportável.

Tudo isso muda quando ele conhece Marla, personagem chave no filme e, posteriormente, Tyler Durden (ou ele mesmo). Devido à complexidade do filme, não é aconselhável continuar lendo se você ainda não o viu, porque o artigo contém spoilers .

Cinza, escuro, desconfortável e nauseante, Clube da Luta é um verdadeiro riso sádico a tudo que nos rodeia, ao mundo como o conhecemos, à sociedade de consumo da qual somos escravos.

David Fincher e seu trio inesquecível de atores (Helena Bonham Carter, Edward Norton e Brad Pitt) conseguem capturar a essência do final dos anos 90, antecipando o que estava por vir, mergulhando em um clube escuro, cheio de sangue e autodestruição.

Cena do filme 'Clube da Luta'

A doença contemporânea

“Vivemos em um mundo doente e estamos doentes”; assim poderíamos resumir o sentimento deixado por Clube da Luta. O filme se apresenta como um relato introspectivo narrado por seu protagonista, mas essa introspecção possui, por sua vez, uma certa universalidade.

Apesar de ser narrado em primeira pessoa, o protagonista não diz seu nome e se apresenta como um homem dos mais comuns: vive sozinho em um apartamento em uma cidade grande, trabalha para uma grande empresa de carros como perito, sofre de insônia e gasta seu dinheiro comprando.

Essa caracterização fica bastante universal. Por não sabermos seu nome, transferimos o relato do seu “eu” para o nosso, fazendo uma retrospectiva de nossa própria vida. O protagonista vive em um mundo que conhecemos, não há fantasia ou artifício, é nossa própria realidade cotidiana. Seus “males” são os nossos males ou os de muitas pessoas que conhecemos.

Seu principal problema é a insônia, seu médico se recusa a continuar prescrevendo pílulas para dormir e ele opta por recorrer à terapias de grupo para pessoas com câncer.

Lá, ele conhece Bob, um homem que, após sofrer de câncer de próstata, perdeu sua masculinidade, seus testículos foram amputados e, por causa do tratamento, desenvolveu seios. O protagonista se sente aliviado junto a essas pessoas e, finalmente, consegue dormir.

Cena do filme 'Clube da Luta'

Ele nem sequer sabe o motivo de sua insônia, desconhece a raiz do problema. Na verdade, tudo o que sabe é que, nessas terapias, encontra um espaço de paz, um lugar para chorar, algo que, até recentemente, parecia proibido para os homens, porque chorar era sinônimo de feminilidade.

Vivemos em um mundo agitado, consumimos para nos sentirmos bem, temos tudo e, no entanto, a cada dia é mais comum ouvir palavras como ansiedade, estresse, insônia, depressão… Assim são as doenças da nossa era, assim é o nosso protagonista.

Justo quando parece que a situação está sob controle e ele consegue administrar seu problema, a parece Marla, a mulher que fará com que a paz se desintegre, que ele se desestabilize e que, mais uma vez, volte a sofrer de insônia. Marla é como ele, é uma mulher para quem a vida não tem sentido, espera pela morte e sua maior dor é o fato de que ela não vem. Ela também recorre a essas terapias, é mais uma visitante.

Por que Marla é uma ameaça? Porque Marla é a imagem viva de si mesma, é a imagem de sua mentira e, se esta for descoberta, todo o seu centro de estabilidade e de paz desaparecerá. A rejeição que Marla produz é uma rejeição de si mesmo; Marla recorre, inclusive, à terapia de câncer de próstata, mas quem vai acreditar que uma mulher sofreu câncer no de próstata?

Esse descaso, essa ideia de se aproveitar da dor dos outros para aliviar a próprias é o que deixa o protagonista louco, simplesmente porque Marla é a versão feminina de si mesmo.

Cena do filme 'Clube da Luta'

Clube da Luta, destruindo o capitalismo

Depois de Marla, aparece Tyler Durden, um homem atraente, forte e que vive fora das normas e do sistema; fabrica sabão, mora em uma casa que poderíamos classificar como ruína e faz sempre o que quer.

Tyler é a antítese da nossa era, é a rejeição absoluta do capitalismo, do homem moderno que vive escravo do seu trabalho para poder comprar coisas materiais que, supostamente, preenchem seu vazio interior.

Juntos, iniciam o clube da luta, o novo grupo de terapia do protagonista. Algumas reuniões em que vários homens são vistos com o único propósito de mostrar seu lado mais selvagem, seu lado mais animal à base de golpes. Tyler é o guru deste grupo, o guia espiritual, o encarregado de extrair toda a ira e toda a raiva do interior desses homens.

Essas lutas ajudam os homens a se libertarem das pressões sociais, a se desprenderem da escravidão em que vivem, a não pensarem e, simplesmente, a se deixarem levar pelo seu lado mais violento.

Como Tyler explica, o cinema nos fez acreditar que poderíamos ser estrelas do rock, atores famosos… A mídia têm nos imposto metas muito altas e, entretanto, nos conformamos em nos fecharmos em um escritório e ter o suficiente para comprar, para ser alguém.

Cena do filme 'Clube da Luta'

Esses problemas de insônia, essa doença contemporânea do protagonista, levaram sua personalidade a se desdobrar, a criar um novo “eu”, a inventar Tyler. Um transtorno dissociativo que nos faz pensar em uma espécie de Mr. Hyde atualizado, mais bonito, mais forte e que representa todos os desejos ocultos do personagem, tudo a raiva acumulada por anos frente à sociedade e ao mundo ao seu redor.

Além das lutas, aparece uma conspiração, são planejados  “diversos atentados com um profundo sentimento de liberdade”, de anarquia; atentados que não vão contra as pessoas, mas que buscam destruir grandes empresas, edifícios e símbolos da escravidão contemporânea.

Clube da Luta é uma pontada, um discurso niilista, um ataque ao final do século e ao começo do seguinte; um duro golpe a Hollywood, ao capitalismo e a nós mesmos. Todos, em algum momento, queríamos ser como Tyler.

“Só quando tudo está perdido, somos livres para agir.”
-Clube da Luta-


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