Minha experiência durante uma noite em uma seita

Como é passar a noite em uma seita de verdade? Como funciona uma seita por dentro? Vou contar como fazendo o Caminho de Santiago acabei em uma delas.
Minha experiência durante uma noite em uma seita

Escrito por Equipe Editorial

Última atualização: 07 fevereiro, 2023

Eu vivi essa experiência que vou contar cerca de 1 ano atrás. Até esse momento, o mais próximo que eu tinha estado de uma seita era através de uma tela ou em anotações da faculdade, mas nunca tinha estado dentro de uma.

No curso de Psicologia contaram-nos, numa disciplina optativa, como as pessoas acabam por aderir a seitas e as consequências psicológicas daí resultantes. Hoje não vou falar das consequências psicológicas de uma experiência como esta (felizmente só estive lá um dia), mas sim de como é uma seita por dentro, como funciona…

Neste breve relato conto como, ao fazer o caminho de Santiago com minha irmã gêmea pelo País Basco, acabamos passando a noite em uma seita (cujo nome não mencionarei por respeito).

Menina com uma mochila fazendo o Caminho de Santiago
Não encontrando nenhum albergue gratuito, decidimos experimentar.

Tudo começou no Caminho de Santiago

Para explicar como acabei por acaso numa seita, tenho que voltar ao início da história. Era agosto do ano passado e eu estava fazendo um trecho do Caminho de Santiago com a Anna. Especificamente, o Caminho do Norte, que passa pelo País Basco. Era o terceiro ano que o fazíamos, e até então nosso procedimento era parecido; não reservávamos os albergues para dormir porque não era possível. Quem chegava antes dormia neles.

Nesse ano (ainda em pleno pós-covid) confiamos em nós e não reservamos nada. A surpresa veio quando estávamos chegando em Donostia, e descobrimos que não tínhamos onde dormir; estava tudo reservado. Conversamos com as pessoas da cidade mais próxima e com os caminhantes, e eles nos disseram que havia um lugar, em uma colina pouco antes de chegar a Donostia, onde poderiam nos receber para passar a noite.

Claro, eles nos avisaram que para ir para lá “teríamos que ter uma mente muito aberta”. Nós realmente não entendemos aquele comentário e queríamos saber mais. “Bem, a verdade é que lá vão pessoas de várias partes do mundo, é uma espécie de comunidade onde vivem segundo as suas próprias regras… Pode ser que você se surpreenda com parte do que vê ali, mas não se preocupe, você vai ficar bem”. A verdade é que estávamos numa situação complexa. Por um lado, não tínhamos onde dormir, mas, por outro, não entendíamos bem as características daquela que parecia ser a nossa única opção.

Chegada na comunidade

Quando chegamos nos receberam muito bem. A casa ficava num lugar lindo, cheio de plantas e árvores, e era uma casa enorme, muito arrumada e bem cuidada. Nos apresentamos e vimos que havia outros peregrinos perdidos por aí, assim como nós. Eram cerca de dez ou doze pessoas, homens e mulheres de diferentes idades, entre 20 e 50 anos, aproximadamente.

Quem nos recebeu foi uma moça muito jovem, tinha cerca de 20 anos ou menos e estava grávida. Ela nos apresentou seu namorado, também da mesma idade, e eles explicaram que se conheceram naquela mesma montanha, naquela mesma comunidade, pois ambos nasceram lá. Disseram-nos que quando uma mulher engravidava, não iam ao médico para fazer exames; que eles não sabiam nada sobre o bebê até ele nascer. Que confiavam em sua natureza e raramente iam ao médico quando estavam doentes.

Nossa segunda surpresa da viagem foi quando eles nos contaram que nunca haviam saído do monte. Contaram-nos (e vimos) outros pormenores que nos chamaram a atenção… Quando lhes perguntamos porque não tinham saído, ou se não tinham curiosidade em fazê-lo, responderam-nos que os pais lhes tinham dito que fora desse lugar o mundo estava cheio de problemas, que não estavam perdendo nada. Com isso, qualquer curiosidade ou vontade de sair dali estava erradicada. Eles tinham sido educados assim e internalizaram essa mensagem.

Sem livros, sem jornais, sem televisão

As pessoas que viviam naquela comunidade não podiam ler livros, jornais ou assistir televisão (nem sequer tinham). Numa seita, algo muito característico é a privação da liberdade, mesmo que de forma “sutil”, assim como o isolamento do mundo. Eles tinham algumas regras básicas de convivência, o que significava que cada membro da comunidade tinha um papel.

Assim, as mulheres tinham algumas funções (cuidar, cozinhar, costurar, ensinar as crianças…) e os homens outras (consertar os danos da casa, tarefas de manutenção, lavrar os campos, etc.). Uma distribuição de tarefas baseada em uma natureza bastante machista, verdade seja dita Mas eles nos explicaram da seguinte maneira: “cada um de nós tem uma missão e pode contribuir com algo de valor para a comunidade”.

As crianças não iam à escola e vestiam-se todas iguais

Outra coisa que chamou a atenção de minha irmã e de mim foi que as crianças da comunidade moravam em uma casa meio escondida, longe da casa onde ficávamos. Elas não iam à escola e os professores da comunidade (que não eram professores “de verdade”, mas pessoas que descobriram que sua missão naquela comunidade era ensinar os pequenos) eram quem lhes davam aulas.

Por outro lado, todas estavam vestidas da mesma forma. As roupas era feitas por eles mesmos. Era um tipo de túnica marrom. A comida também era sempre de elaboração própria, toda vegana e muito saudável (das suas hortas). Não compravam quase nada na cidade, apenas o essencial.

Eles mudavam o nome

Também havia uma mudança na sua identidade, algo também comum em uma seita (alteração de identidade). Todas as pessoas que entravam na comunidade eram obrigadas a mudar de nome quando “seu Deus o tivesse escolhido” (um nome religioso). Elas se baseavam em uma religião que não lembro qual era, mas não era cristã, era uma espécie de adaptação do cristianismo, com suas modificações pertinentes.

Essas pessoas tinham um guia espiritual que seria o equivalente a Jesus, mas com outro nome, e todos os membros da religião cristã também tinham outros nomes. Quando o Deus deles escolhia o nome de cada membro, eles eram batizados nus no mar por meio de um ritual e uma cerimônia.

Não existia privacidade

Nenhum membro tinha seu próprio quarto. Todos dormiam em comunidade, em quartos compartilhados. Nem mesmo os casais tinham seu espaço privado. Minha irmã perguntou a uma das integrantes se não sentiam falta de privacidade. Ela respondeu que seria egoísmo, que todos estavam ali para e por todos, sempre juntos.

Procuramos no celular onde estamos e… surpresa

Estou ciente de que o que contei até agora pode parecer um pouco estranho, mas nem todos pensariam que talvez se tratasse de uma seita. Procuramos o local onde estávamos, o nome da tribo ou comunidade, e descobrimos que a seita havia feito uma reportagem sobre o local.

O definiam literalmente como uma seita, que, aliás, estava espalhada por todo o mundo (existem dezenas, ou centenas de grupos com o mesmo nome na Europa, América Latina…). Tinham um nome muito específico que não direi por respeito, com uma história por trás. Também pudemos ampliar todas essas informações pesquisando em fóruns e na internet. Vimos também vídeos de testemunhos que passaram por aquela comunidade, e membros dela, que ainda estavam lá dentro, explicando como viviam. Ficamos aterrorizadas.

Também encontramos depoimentos de especialistas de seitas, psicólogos e profissionais falando sobre ela. Na verdade, o que vivemos ali foi apenas um “pedacinho” muito pequeno de toda a sua vida.

Garota procurando informações com o celular
Ao buscar informações no celular, identificamos o nome da seita junto com as opiniões de especialistas falando sobre ela.

O que a moça do nosso quarto nos disse

O que mais nos impressionou foi o depoimento de uma moça, de uns 30 anos, que dormia no mesmo quarto que nós. Pertencia à comunidade há algum tempo, se não me recordo mal, uns seis ou sete anos. E desde então não tinha mais contato com a família.

Ela nos disse que a comunidade mudou sua vida; que ela se sentia muito perdida, que estava envolvida no mundo das drogas, que não tinha ninguém… até que viu a luz naquela comunidade. Que ela foi “chamada por seu Deus”. Aquela moça tinha algo no olhar… no jeito de falar… parecia repetir o que tantas vezes ouvira dentro daquele lugar, como um autômato convicto. Como se fosse um lema, uma mensagem a ser gravada a fogo e ferro. E como se o que tivesse sido em outra vida já não existisse mais.

Você deve dar tudo

Também nos disse que, para pertencer à comunidade, deve-se dar tudo antes de entrar (todo tipo de bens que você possui; carros, casas, o que for). Embora “Deus te chame”, não é gratuito. Nos disse que eles sabiam que o mundo ia acabar e que naquela comunidade eles estavam constantemente aprendendo como se salvar, todos juntos.

O olhar e o jeito de falar

Essa moça, que adotara um nome hebraico, contou-nos mil coisas sobre o lugar, tantas que seria muito difícil reuni-las em um único artigo. Percebi nela, como em todos os membros, algo muito característico, que minha irmã também notou (sem ter falado antes): seu olhar. O olhar daquelas pessoas. Parecia ausente, distante. Como se estivessem vendo de um lugar muito distante e antigo, e agora só vinha o eco deles.

Com suas frases e palavras, o mesmo. Realmente, naquele lugar todos pareciam… abduzidos, como se seus cérebros tivessem sido reprogramados. Como se não tivessem critérios próprios, ou os critérios que tivessem fossem os mesmos, os únicos, os compartilhados pela comunidade. Como se não houvesse nada a questionar ali; como se tudo fosse como deveria ser. Claro, vivendo isolado do mundo, quem pode refutar alguma coisa? Você nasce lá e aceita o que essa vida lhe oferece. Sem perguntar nada.

Uma experiência muito positiva

No entanto, apesar de nosso espanto ao descobrir esse mundo particular, não quero que pareça que estou criticando alguma coisa (pelo contrário, respeito profundamente; mas isso não significa que eu não saiba como uma seita, não digo esta, senão de modo geral, pode destruir a sua vida). Não compartilho o seu modo de vida e acho que há muitas maneiras de chegar a uma comunidade assim e permanecer nela. E embora eu saiba que cada seita é diferente, para mim esta tinha muitos elementos para ser assim.

Mas também tenho que admitir que foram encantadores conosco (pessoalmente, quando me viram tão interessado porque eu perguntei muitas coisas, eles me pediram para ficar ). Trataram-nos muito bem (não nos deixaram colaborar nas tarefas de cozinhar, pôr a mesa… algo que também me surpreendeu). A comida era toda vegana e estava deliciosa. Só pediram o que podíamos dar para o fato de lá passar a noite. Mas aprendi muito com a experiência, e com o mundo particular deles, com tudo o que eles nos explicaram.

E apesar de não ter dormido a noite toda (porque no fundo, fiquei chocada, e a moça que nos “acolheu” e que nos explicou tudo ficava se levantando para abrir e fechar armários, tinha um comportamento muito estranho), eles foram muito gentis e sem dúvida eu repetiria algo assim. Embora isso não signifique que eu não seja crítica desse mundo que encontrei sem procurá-lo.


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  • Baamonde, J. M. (2003). La manipulación psicológica de las sectas. Colección Claves, 9.
  • Díaz, Á. F. (2015). Sectas y manipulación mental. Un enfoque desde la Psicología (Vol. 3). Lulu. com.

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