Os pássaros: desenvolvendo a ornitofobia
Três anos depois do sucesso de Psicose, Hitchcock nos presenteou com um longa-metragem que desconcertou o público e a crítica. Esse filme recebeu críticas negativas e positivas pela ruptura que representou em relação às outras obras da época. Com Os Pássaros o cineasta abraçou um gênero que, apesar de nadar no suspense, pouco ou nada teve a ver com os seus primeiros filmes: o fantástico.
Os pássaros foi um marco no mundo do cinema, proporcionando momentos icônicos. O filme começa em tom cômico e nos apresenta a Mitch e Melanie, dois jovens que se conhecem em uma pet shop. Tudo parece correr bem, e a jovem Melanie decide deixar São Francisco para tentar conquistar Mitch em uma cidade chamada Bodega Bay.
A partir deste momento, desejo e terror parecem andar de mãos dadas e compor o pior dos pesadelos. Em um cenário quase apocalíptico se desenvolvem o irracional e o pior dos medos para todos aqueles que sofrem de ornitofobia. Neste artigo descobriremos alguns segredos de um dos filmes mais icônicos do terror.
As origens
Hitchcock já havia conhecido o sucesso através da obra de Daphne du Maurier com Rebecca, a mulher inesquecível (Hitchcock, 1940) e A Estalagem Maldita (Hitchcock, 1939). Ambos filmes trouxeram muito sucesso e elogios do público e da crítica. Com Os Pássaros ele decidiu adaptar, mais uma vez, um romance do escritora britânica.
No entanto, nesta ocasião o cineasta mergulhou em uma forma de terror que ainda não havia explorado: o fantástico. Hitchcock entrou para a história como o mestre do suspense, e atualmente todos se lembram dele por causa de filmes em que o crime e a maldade constituem o lado mais negro do ser humano. Mas com Os pássaros ele se aventurou em um novo caminho ainda a ser explorado, tanto do ponto de vista técnico quanto narrativo.
Os pássaros apresentou uma série de inovações e efeitos especiais que naquela época foram um grande desafio. Hoje em dia quando vemos o filme não é difícil identificar pássaros totalmente artificiais, mas o importante não é assistir o filme na perspectiva atual, mas sim em seu próprio contexto.
Além disso cabe destacar o uso da sonoplastia, considerando principalmente que o mestre do suspense dizia que se um filme fosse bom, poderia ser visto sem som. Apesar dessa afirmação, em Os pássaros ele decidiu inovar e confiar fortemente nos efeitos sonoros, assim como na falta deles.
Assim, nos encontramos diante de algumas cenas totalmente avassaladoras marcadas por um som ensurdecedor de pássaros e outras em que, diante de um acontecimento trágico como a descoberta de um cadáver, o silêncio toma conta da cena afogando gritos de terror.
Ao mesmo tempo são explorados temas como o desejo e a relação entre mães e filhos, que havíamos visto anteriormente em filmes como Psicose. A inovação proposta conseguiu dividir a crítica, e muitos consideraram que o longa-metragem não estava à altura da tarefa, embora o tempo tenha mostrado que eles estavam errados e que, como sabemos, o terror se encontra no cotidiano.
Metáforas em Os pássaros
Hitchcock é um dos cineastas que mais brincou com a metáfora e até com a psicanálise. De certa forma, ele gosta de brincar com a nossa percepção e construir imagens carregadas de simbolismo que guardam uma relação de semelhança com o que ele realmente deseja expressar.
Desta forma, em Os Pássaros ele nos apresenta um terror cotidiano que começa enjaulando pássaros, mas termina enjaulando humanos. O interessante é que a história nos é apresentada em uma pet shop, um lugar onde esses animais ficam em cativeiro e os humanos fazem com eles o que querem, mas progressivamente nos mostra como são agora os humanos que se escondem dos pássaros e precisam permanecer presos por medo de um ataque.
Além disso, os agapornis comprados por Melanie para a irmã de Mitch aparecem ao longo do filme e, de fato, o ataque dos pássaros parece estar ligado à presença dos dois passarinhos engaiolados. Trata-se portanto de uma vingança divina? De uma vingança das aves contra os humanos pela escravidão a que elas são submetidas?
Melanie e Mitch começam o seu diálogo falando sobre pássaros engaiolados enquanto estão em uma pet shop e o interessante é que, conforme o filme avança parece que os papéis mudam, e os humanos é que terão uma conversa semelhante enquanto estão presos.
É como se o casal de agapornis materializasse a conversa que poderiam ter tido na pet shop: dois seres enjaulados, sem liberdade por causa de um ser “superior” que os amedronta e tortura.
A ideia do humano enclausurado por pássaros parte de um certo tom da comédia para aprofundar suas raízes no terror cotidiano (pois não é sobrenatural, embora seja fantástico), visto que não deixa de ser razoável uma vingança por parte dos pássaros.
De fato, em uma das cenas mais interessantes a idosa especialista em pássaros explica a Melanie que os acontecimentos narrados são impossíveis e que com certeza ela deve ter incomodado os pássaros para fazê-los agir desta forma. Tudo isso nos leva a pensar que, talvez, adquirir dois agapornis enjaulados e contribuir com o cativeiro dos pássaros não tenha trazido mais do que consequências negativas.
Da mesma forma, a metáfora vai além das barras da gaiola e pode ser aplicada aos próprios personagens já que vemos um exemplo claro do medo do ninho vazio da mãe de Mitch, que parece temer que seu filho seja feliz fora de casa. Também vemos certas conotações ligadas ao desejo feminino em Melanie.
Melanie aparece trancada e cercada por pássaros enjaulados até conhecer Mitch, como se seu desejo tivesse permanecido preso até que ela se aproximasse de um gatilho que a fizesse sair da sua zona de conforto para procurar o seu amado.
Melanie, como os pássaros, precisará deixar de lado um território familiar e enfrentar novas ameaças, pois ela está em total contraste com a cidade de Bodega Bay; ela também logo descobrirá que não é a única interessada em Mitch. Além disso, o casal de pássaros engaiolados representa, por sua vez, uma alegoria do casal.
O suspense e o terror cotidiano
Não existe maldade humana, mas prendemos pássaros em gaiolas para o nosso próprio prazer. Os pássaros parece nos dizer que as nossas ações e desejos têm consequências terríveis. Não é aleatório introduzir esses pequenos pássaros desde o início para progredir de pequenas investidas a ataques massivos de pássaros maiores.
Desta forma, vemos claramente um ataque à inocência, uma destruição da mesma que se materializa quando os pássaros atacam o colégio.
Hitchcock, como bom mestre do suspense, nos mostra essa progressão e consegue dosar o terror. Nesta ocasião ele se afasta da explicação racional e nos coloca em uma posição fantástica.
Como Todorov apontou, o fantástico reside na dicotomia entre as explicações racionais e irracionais, e é assim que o percebemos quando os personagens discutem em um bar sobre a natureza dos ataques. Enquanto alguns o chamam de apocalíptico, outros insistem em buscar a lógica e nos fazer entender que provavelmente os humanos fizeram algo aos pássaros para que eles agissem dessa forma.
Aos poucos ambas explicações se confundem, gerando estranheza no espectador; de uma investida isolada passamos a um ataque em massa, e de uma explicação lógica passamos a uma sobrenatural.
Hitchcock nos apresenta uma série de teorias abertas que se verbalizam no meio da filmagem, de forma que o espectador pode escolher um caminho ou outro, ou mesmo ambos. O fim do mundo parece estar mais perto do que parece, mas não sabemos se nós, humanos, o provocamos ou se esse é um fato sobrenatural.
Uma das coisas mais interessantes é que, na época, todos os filmes terminavam com um pôster clássico de “Fim”; no entanto, Os pássaros omite essa informação para nos dar um final ainda mais aberto e, portanto, o espectador é quem decide com qual versão ou encerramento decide ficar. Essa tradição definida com maestria por Hitchcock marcou uma época, e também inspirou cineastas posteriores como Shyamalan, pois há muitas semelhanças com as obras Sinais (2002) e O Incidente (2014).
É interessante observar como a partir de algo cotidiano como agapornis ou uma pet shop, é possível evoluir para o sinistro. O sinistro acaba inundando o cotidiano e nos convida a sentir a estranheza do que vemos. Estranheza essa que se baseia na dicotomia entre o real e o irracional, e que agradará aos amantes do estranho e trará pesadelos para quem sofre de ornitofobia. Nunca as penas nunca foram tão aterrorizantes. O cinema, mais uma vez, é capaz de despertar inúmeras emoções.