Somos uma sociedade com o colesterol alto e o ânimo baixo

Somos uma sociedade com o colesterol alto e o ânimo baixo

Última atualização: 07 junho, 2017

Somos uma sociedade onde o sofrimento continua sendo um estigma fechado. Tomamos remédios para a dor da vida escondidos, tratamos nosso colesterol alto e nosso ânimo baixo enquanto nos perguntam como está o nosso humorcomo se a depressão fosse isso, um simples resfriado ou uma infecção a ser curada com antibióticos.

Os profissionais de saúde primária, que não sabem lidar com isso, dizem que diariamente atendem dezenas de pessoas com claros indicadores de uma depressão ou de algum transtorno de ansiedade. É como se a sociedade fosse uma pupila que se dilata ao entrar em um quarto escuro, onde a escuridão paralisa imediatamente.

“Os pássaros da tristeza podem voar sobre nossas cabeças, mas não podem fazer ninhos em nossos cabelos”.
– Provérbio chinês –

O sofrimento gruda no corpo e na mente, faz as costas doerem, os ossos, a alma, queima o estômago e aperta o peito. Os lençóis nos prendem em seu morno refúgio, como os tentáculos de um polvo nos convidando a ficar ali, longe do mundo, da luz, das conversas e do ruído da vida.

Assim como a OMS (Organização Mundial da Saúde) nos adverte, nos próximos 20 anos a depressão vai ser o principal problema de saúde da população ocidental, e para enfrentar este impacto, nós não só precisamos de medidas, ferramentas ou profissionais bem formados; precisamos também de conscientização e sensibilidade.

É necessário se lembrar de que nenhum de nós é imune a sofrer, em algum momento, de algum transtorno psicológico. Nós não podemos banalizar o sofrimento; é positivo compreendê-lo, saber lidar com ele e, antes de tudo, prevenir doenças como a depressão.

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A depressão como estigma e fracasso pessoal

Marcos tem 49 anos e é auxiliar de enfermagem. Foi diagnosticado há dois dias com um quadro ansioso-depressivo. Antes de marcar a consulta com o especialista, ele mesmo já intuía a sombra da depressão, talvez porque reconhecia os sintomas como lembranças de sua infância, quando sua mãe costumava passar terríveis momentos onde o mau humor e o isolamento em seu quarto eram presentes. Uma época que marcou grande parte da sua infância.

Agora é ele, e mesmo que tenham sugerido que pedisse uma licença, Marcos se nega a fazer isso. Ele tem medo de comentar com seus companheiros de trabalho (médicos e enfermeiras) sobre o que está acontecendo com ele, porque está envergonhado, porque para ele a depressão é como um fracasso pessoal, uma fraqueza herdada. De fato, em sua mente surgem apenas pensamentos obsessivos, repetitivos e persistentes somados à lembrança de sua mãe. Uma mulher que nunca foi ao médico e que passou grande parte de sua vida presa a um atordoante ciclo emocional de altos e baixos.

Marcos, sim, foi ao psiquiatra, e diz a si mesmo que está fazendo as coisas certas, porque os medicamentos vão lhe ajudar porque esta é só mais uma doença a ser tratada, assim como a sua hipertensão, seu colesterol ou seu hipotireoidismo. No entanto, nosso protagonista se equivoca, porque os comprimidos para a dor da vida adulta ajudam, mas não são suficientes; porque a depressão, assim como muitos outros transtornos psicológicos, precisa de mais três elementos: psicoterapia, um plano de vida e apoio social.

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O ânimo baixo, o sofrimento alto e o desconhecimento eterno

Estamos acostumados a escutar que o sofrimento faz parte da vida, que às vezes uma experiência dolorosa nos ajuda a ser mais fortes, a investir em nosso crescimento pessoal. No entanto, nos esquecemos de que existe outro tipo de sofrimento que nos afeta sem razão aparente, sem um gatilho, como um vento frio que diminui nosso ânimo, nossa vontade de fazer as coisas e a nossa energia.

 “Amuralhar o próprio sofrimento é arriscar que ele te devore desde dentro.”
-Frida Kahlo-

O sofrimento existencial é o grande vírus do ser humano atual. Não é visto, não pode ser tocado, mas causa estragos. Com o tempo, um manual de diagnóstico vai dar um nome ao que nos afeta e vamos nos transformar em mais um rótulo, até o ponto em que muitos profissionais de saúde se percam em excessos no modelo científico. Eles se esquecem de que cada paciente depressivo é único, com características clínicas próprias, com uma história própria, e que, às vezes, uma mesma estratégia não serve para todos.

Por outro lado, um outro problema que encontramos na hora de abordar a depressão é que, em muitos países, ainda não existe um protocolo adequado. Geralmente são os médicos clínicos gerais que a diagnosticam e a tratam com medicamentos. Somente se o paciente não melhorar, ele é encaminhado à psiquiatria. Tudo isso demonstra mais uma vez que os problemas da saúde mental não são suficientemente reconhecidos, embora a evidência seja clara: 1 em cada 6 pessoas vai sofrer de depressão em algum momento de sua vida.

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Dessa forma, a abordagem muitas vezes deficiente do sistema médico com relação a este tipo de doença é somada ao estigma social citado anteriormente. De fato, há um dado curioso que é explicado em um artigo da revista “Psychology Today“e que nos convida, sem dúvidas, a uma profunda reflexão.

Se for explicado para a população de uma determinada cidade que a depressão “se deve” exclusivamente a causas neurobiológicas, há uma maior aceitação. E mais, as visitas aos psicólogos e aos psiquiatras vão aumentar, porque as pessoas vão deixar de atribuir a si mesmas a “suposta” fraqueza,  a falta de força por terem se deixado afetar pelo desânimo e pelo sofrimento.

Lamentavelmente, assim como podemos ver, continuamos presos ao desconhecimento, onde determinadas doenças continuam sendo sinônimo de loucura, de fraqueza ou de um defeito que deve ser escondido. Está na hora de normalizar, de entender e, antes de tudo, refletir sobre essas outras doenças que não precisam de gesso, de pontos e nem de soro a cada 6 horas.

Devemos deixar de desvalorizar o sofrimento e devemos começar a aprender com ele, a sermos agentes ativos e, acima de tudo, próximos.

Créditos das imagens: Samy Charnine


Este texto é fornecido apenas para fins informativos e não substitui a consulta com um profissional. Em caso de dúvida, consulte o seu especialista.