Tár, uma epopeia sobre abuso e autodestruição
Há filmes em que a angústia está invisivelmente impregnada na atmosfera, na comunicação não-verbal e até no tic-tac de um metrônomo. Esses elementos configuram, em muitos casos, os complexos estratos psicológicos dos protagonistas, seus medos e até suas paranóias. Exemplo disso é a última grande produção do ator que virou diretor Todd Field.
Tár é um retrato audiovisual de uma diretora de orquestra que leva sua existência quase como um totem. Ela está no auge de sua carreira e é um exemplo claro de como certas mulheres, longe de quebrar o teto de vidro, o dissolvem com sua personalidade e valor retumbante. Ora, se há algo que descobrimos, é que, por vezes, por detrás do “mestre”, pode habitar um “monstro”.
Este é um psicodrama extraordinário que lembra Kubrick e concorre a seis indicações ao Oscar. Muitos o veem como uma parábola sobre o movimento #Metoo, outros a própria essência da cultura do cancelamento. Embora o verdadeiro motor deste filme seja a atuação titânica de uma Cate Blanchett em estado de graça.
Não há limite para os diferentes tipos de sentimentos que a música pode fazer você ter. E alguns desses sentimentos são tão especiais e tão profundos que nem podem ser descritos em palavras.
-Leonard Bernstein-
Lydia Tár e a glória meritocrática
Tár brinca com o espectador, é um enigma, um mistério a desvendar e um caleidoscópio de luz e sombra. A primeira parte do filme concentra-se quase exclusivamente em nos mostrar como é sua protagonista, Lydia Tár. Assistiremos à sua apresentação num palco em Manhattan e veremos ainda como a sua biografia é editada na Wikipédia.
Sua introdução é tão digna de crédito que o espectador tem o súbito desejo de pesquisar seu nome no Google. Quase inconscientemente, assumimos que estamos diante de um filme biográfico, quando não é. A personagem é absolutamente inventiva, mas… por que alguém como ela não poderia existir? Esta diretora de orquestra titular da Filarmônica de Berlim é o epítome da glória meritocrática.
Tem como mentor Leonard Bernstein, já tocou em grandes orquestras como a de Nova Iorque, Cleveland ou Boston. Ela tem um doutorado em Harvard, ganhou um Emmy, um Grammy, um Oscar e até um Tony. Agora, seu livro Tár on Tár está prestes a ser lançado. Seu sucesso, sua influência na mídia e até mesmo seu poder são mais do que justificados, mas às vezes os que estão no topo caem…
Mundos enclausurados e uma personalidade hermética
O filme se passa em grandes edifícios com longos corredores brancos e tetos altos. As salas são imensas e nelas acontecem os meandros da política musical, onde Tár exerce o controle absoluto. Tudo parece frio, padronizado e dominado pela necessidade constante da protagonista exercer controle.
Ao longo dessa primeira parte assistimos à sua viagem de regresso de Nova Iorque a Berlim. Não demoramos muito para perceber seus problemas pessoais, uma história afetiva que ela tenta esquecer e alguns problemas emocionais que aplaca com psicofármacos. Seu assistente orbita ao seu redor com a tristeza e o fascínio de quem não consegue acessar ou entender seu objeto desejado.
Lydia mora com Sharon, a primeira violinista da Filarmônica de Berlim, e sua filha, Petra. A relação respira um sutil ressentimento, assim como uma certa tristeza que se camufla com as rotinas de criação da menina e o próprio trabalho. A sua profissão é o seu maior escudo e o mecanismo que mais o nutre ao dar-lhe o poder de que tanto necessita.
Hoje, a palavra “diverso” é mal vista. Nossa era é a dos especialistas. Eles desprezam você se você tentar fazer mais de uma coisa. Artistas são rotulados. De forma gressiva.
-Lydia Tár-
O monstro por trás da perfeição estética
O filme exala a atmosfera psicológica das produções de Kubrick. Na segunda parte somos submetidos a uma estranha sensação de ameaça. Lydia Tár começa a perceber o véu de algo maligno ao seu redor, algo que se aproxima. Nada mais é do que o calafrio de quem escuta os ecos da própria consciência, de quem sente que algo adverso está para acontecer.
Ela ouve gritos femininos em uma floresta, o metrônomo em armários trancados e pianos que soam como o seu. Esses eventos aumentam a tensão à medida que o lado sombrio do próprio personagem é gradualmente revelado a nós. Ela fica obcecada por uma jovem violoncelista que não hesita em promover, enquanto bane e dispensa outras figuras.
Pouco depois, descobrimos que esse é um padrão habitual nela: ela usa as pessoas ao seu capricho e desejo, as manipula da mesma forma que dirige os músicos em seus shows com sua batuta, com paixão, mas com violenta contundência. Embora seu comportamento acabe tendo consequências dramáticas. E esse será o começo de sua queda.
Você deve se apresentar diante do público e diante de Deus e então destruir a si mesmo
-Lydia Tár-
Cultura do cancelamento ou paradoxo do movimento #Metoo ?
Tár é a história deslumbrante de uma mulher que alcançou uma posição privilegiada por seus próprios méritos e que é afastada dessa esfera dourada. Aprendemos que não é fácil permanecer naquele estrato social quando a opinião pública é como um deus onipotente que exalta e destrói. O espectador é livre para avaliar se a conduta da protagonista merece seu desfecho.
Cabe a nós mesmos, também, concluir se a conduta de um artista é mais importante que sua própria obra. A cultura do cancelamento é aquele fenômeno que cada vez mais engole figuras públicas por comentários ou comportamentos que, em determinado momento, interpretamos como ofensivos.
Essa é a partitura autêntica dessa produção em que cada um pode construir sua própria opinião e avaliação. O aspecto em que todos concordamos está na extraordinária atuação de Cate Blanchett na hora de dar vida a essa mulher que tanto nos cativa quanto nos preocupa.