A conexão entre trauma e vício

De acordo com alguns estudos, os traumas durante a infância e o estresse crônico podem aumentar o risco de desenvolver vícios na idade adulta.
A conexão entre trauma e vício
Cristina Roda Rivera

Escrito e verificado por a psicóloga Cristina Roda Rivera.

Última atualização: 22 dezembro, 2022

A conexão entre trauma e vício já foi amplamente documentada na literatura científica. Na prática clínica, os profissionais encontram repetidas vezes pacientes que apresentam um vício e um histórico de trauma. A questão para os psicólogos é saber se essa conexão deve ser abordada como um único problema ou não.

Ao tratar um vício, se não tratarmos o trauma que levou a ele ao mesmo tempo, a abordagem pode ser insuficiente. Visto a partir desse prisma, o viciado seria tanto o carrasco quanto a vítima de si mesmo, ao invés de um “viciado” aos olhos da sociedade.

Neste artigo, vamos falar sobre essa conexão. Tentaremos explicar a forte alteração neurobiológica que os traumas causam no circuito do estresse, principalmente se houver traumas repetidos. Em inúmeras ocasiões, o vício aparece como a única saída para regular esse sistema alterado.

Um sistema neurobiológico alterado no enfrentamento do estresse

O sistema do estresse é amplamente governado pelo eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA), que nos prepara para responder a um sinal de perigo de forma eficaz. Assim, quando se identifica um estressor, o eixo HHA (juntamente com outros sistemas) nos prepara para “lutar ou fugir”, desencadeando a secreção de hormônios do estresse, tais como adrenalina e glicocorticoides.

Quando a resposta ao estresse é ativada, tendemos a experimentar hiperexcitação, aumento da pressão arterial, ritmo cardíaco acelerado e uma sensação de alerta. O sangue e a energia são desviados para as estruturas cerebrais que podem oferecer assistência imediata em vez de usar o córtex pré-frontal, que é mais lento e que controla o funcionamento executivo e a autorregulação. Essas respostas automáticas nos ajudam a responder ao perigo até que a ameaça seja eliminada.

No entanto, há momentos em que o sistema do estresse atua contra nós. Normalmente, trata-se de situações em que os eventos traumáticos são persistentes e a ameaça nunca é eliminada.

Os episódios traumáticos podem exacerbar a desregulação desse sistema do estresse. Falando mais especificamente, o eixo HHA fica ativado de forma crônica, levando assim a um aumento dos hormônios do estresse e da hiperexcitação que os acompanham.

Portanto, crianças ou adultos que passaram por eventos traumáticos, sobretudo de forma prolongada, podem experimentar uma excitação contínua, além de ansiedade, hipervigilância e um estado de alerta.

Cérebro atingido para simular o estresse

Trauma e vício: a automedicação como forma de regular a dor

Para as pessoas com sistemas do estresse desregulados como resultado de um trauma, as drogas de abuso podem oferecer um alívio para a hiperexcitação e a ansiedade crônicas. Álcool, benzodiazepínicos, opiáceos e cannabis têm efeitos intoxicantes calmantes.

Algumas dessas substâncias servem até mesmo para desacelerar o sistema nervoso central, ou seja, são depressoras. Além disso, os jogos de azar (especialmente as máquinas de jogo eletrônicas) induzem os jogadores a uma espécie de transe no qual eles se esquecem de tudo que não seja a máquina.

As pessoas com histórico de trauma podem ser mais vulneráveis ao vício como uma forma de regular o humor, acalmar pensamentos intrusivos e suprimir a excitação causada pelo aumento dos hormônios do estresse.

O problema é que essas substâncias e os seus efeitos desaparecem e, quando isso acontece, o estado de humor se deprime drasticamente. Isso pode piorar ainda mais os efeitos dos transtornos traumáticos. Assim, a pessoa precisa usar as drogas repetidamente para voltar a sentir os efeitos positivos de alteração da mente. Portanto, é aqui que o ciclo do vício geralmente começa.

Estamos nos referindo apenas ao vício em substâncias químicas?

A dependência se manifesta em qualquer comportamento em que a pessoa encontra prazer ou alívio temporário e, por isso, a pessoa deseja tão intensamente a atividade ou substância que negligencia de forma total ou parcial as outras esferas da vida. A pessoa sofre com as consequências negativas, mas não consegue parar e pensar nelas.

Isso pode incluir drogas, álcool e substâncias de todos os tipos. Também pode ter relação com o sexo, jogos de azar, compras, trabalho, jogos online, etc. Praticamente todas as atividades podem ser viciantes, dependendo da nossa relação com elas. Assim, se houver desejo e alívio constantes com consequências negativas a longo prazo, bem como dificuldade para cessar essas atividades, existe um vício.

O abuso de substâncias como fator de risco para o trauma

O trauma nem sempre inicia o ciclo do vício. Às vezes, é o abuso de substâncias que pode levar a uma experiência traumática na vida. Sabemos que o uso de drogas pode levar a uma grande quantidade de comportamentos de risco, tais como sexo desprotegido, violência física e dirigir sob a influência de álcool.

Muitas vezes, esses comportamentos de risco levam a resultados adversos ou traumáticos: gravidez indesejada, lesões graves e acidentes de trânsito são apenas alguns exemplos. Para muitos, esses eventos traumáticos podem levar a consequências emocionais de longo prazo causadas pelo trauma. Tudo isso pode ter como resultado um abuso ainda maior de substâncias.

Homem com problemas de dependência

Intervenção para o trauma e o vício

Às vezes, longos períodos de “autocura” por meio de drogas e álcool conseguem embotar com sucesso a memória do trauma e, dessa forma o único problema aparente é o abuso de substâncias e o vício.

Uma pessoa que reprimiu ou ignorou experiências traumáticas pode fazer um grande esforço para permanecer sóbria. No entanto, aparecem no seu lugar outros comportamentos de dependência que, a longo prazo, substituem as drogas e o álcool. Isso pode envolver qualquer atividade impulsionada pela compulsão.

De qualquer forma, lidar com as marcas de eventos traumáticos é uma tarefa terapêutica que dificilmente pode ocorrer juntamente com a presença de drogas ou álcool. Por isso, é recomendável começar a trabalhar com técnicas de modificação do comportamento para erradicar o uso de drogas e o alcoolismo.

Nesse momento, quando o sobrevivente do trauma estiver mais conectado ao presente, ele poderá começar a trabalhar com um psicólogo para lidar com o trauma. De fato, foram criadas modalidades de tratamento específicas para as pessoas que sofrem com os impactos a longo prazo depois de traumas precoces ou relativamente frequentes.

Por esse motivo, o tratamento do trauma e do abuso de substâncias geralmente ocorre em paralelo. Existem duas terapias focadas nessa missão conjunta, que são a intervenção na dependência causada por trauma e o tratamento informado para trauma.


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