Os cavalos de Deus: a outra face do terrorismo

O dogmatismo religioso pode ser tão perigoso, a ponto de culminar em atos terroristas, como os narrados neste texto.
Os cavalos de Deus: a outra face do terrorismo
Alicia Escaño Hidalgo

Escrito e verificado por a psicóloga Alicia Escaño Hidalgo.

Última atualização: 27 abril, 2024

Nas nossas retinas e sobretudo nos nossos corações, residem a tristeza e a angústia sofridas após cada atentado terrorista. Muitos não conseguem compreender como existe alguém que pode cometer tais atrocidades contra outras pessoas. No entanto, hoje queremos falar sobre a outra face do terrorismo.

Sentimos ódio, a sede de vingança e o rancor. Nós julgamos os terroristas, desejamos que eles apodreçam no inferno e achamos que eles são mais do que psicopatas, que são verdadeiros assassinos cheios de maldade contra o Ocidente.

A realidade é bem diferente. Ninguém nasce desejando aniquilar outro povo, ninguém sente ódio sem mais nem menos. O homem é bom por natureza, ou pelo menos tem a possibilidade de ser. Quando nasce, é apenas uma criança cuja missão é brincar e ser feliz, mas ao longo dos anos e como resultado do mundo que criamos, a criança aprende, de maneira falha, determinadas formas de pensar e se comportar. É então que se transforma em um monstro, embora na verdade seja apenas mais uma vítima.

Se não entendermos a outra face do terrorismo, de onde ele vem, dificilmente poderemos acabar com ele. Não são os terroristas que merecem a nossa compreensão, mas é o problema que precisa, para sua resolução, da nossa inteligência.

Homem diante de espelho quebrado

A obra de Mahi Binebine e a outra face do terrorismo

Nos dias de hoje me vem à cabeça uma história indispensável para o momento pelo qual estamos passando. Seu título é Os cavalos de Deus, do autor marroquino Mahi Binebine. Essa é a maneira de chamar essas crianças que se sacrificam fazendo o que o imã (título dos sucessores de Maomé, guias ou líderes espirituais de uma comunidade islâmica) lhes disser que devem fazer. Além disso, o nome faz referência à forma como, ao serem fiéis, chegarão ao paraíso a galope, como os cavalos, e serão rodeados por belas virgens.

O romance de Binebine é de um realismo arrepiante. Ele conta a dura realidade de crianças que vivem em um bairro marginalizado do Marrocos, que nasceram no seio de famílias desestruturadas, que estão conscientes de que nunca vão conquistar o futuro que no fundo desejam, e que sabem que a única coisa que os espera, assim como aconteceu com seu avô e seu pai, é a miséria e a desgraça.

Eles sonham em ser estrelas de futebol e praticam todos os dias no bairro para realizar esse sonho. Muitas das crianças do romance poderiam conseguir porque têm habilidades. Para o futebol e para outras coisas mais. Mas nunca vão realizar esse sonho, elas sabem que isso não vai acontecer porque para conseguir, primeiro é necessário uma oportunidade.

O que o leitor acha que acontece com a autoestima dessas crianças que não têm esperança alguma? Obviamente, fica destruída, ausente de motivos para continuar em pé. Elas estão conscientes de que o máximo que podem desejar é vender laranjas todos os dias nas ruas e rezar para que o ganho seja suficiente para ter o que comer.

É nesse momento que chega a esperança, a luz, aquela pessoa que promete, finalmente, um sentido para a vida. O imã, de forma agradável e acolhedora, coloca ao alcance dessas crianças, ou pelo menos as faz ver que está ao seu alcance, a oportunidade de sair da pobreza. Não apenas lhes promete esperanças sonhadoras através de belas palavras que aumentariam a autoestima de qualquer pessoa, mas também garante o paraíso, com tudo o que esse lugar inclui. Ele as convence de que podem ser úteis e fazer algo importante, que os fins justificam os meios.

E é aqui que surge o grande paradoxo: para dar um sentido a minha existência devo acabar com ela, e assim obterei a esperança.

Manipular o cérebro das pessoas

Questão de pouca inteligência? Não, longe disso. Certamente são crianças inteligentes que, se tivessem recebido uma educação formal, teriam chegado longe. O problema é que a formação e a cultura se fazem notar pela sua ausência e faz muito tempo que suas necessidades não significam nada para aqueles que sustentam o poder.

Quando o ser humano se sente sem esperança, é capaz de se apegar a qualquer coisa, por mais que essa situação desesperada possa condenar à mesma saída que agora prefere. O imã é capaz de seduzir essas crianças até conseguir fazer com que acabem com suas vidas e semeiem o terror.

Onde está a solução?

De acordo com o que comentamos, parece evidente que a solução dessas barbáries que são cometidas tanto no Oriente como no Ocidente é promover a integração dessas crianças, investir tempo, esforço e dinheiro na educação delas, de maneira que não tenham que passar por tanta desesperança e acabem se transformando em uma presa fácil para os imãs.

A solução a longo prazo não está em reforçar a segurança em certas regiões e ignorar a essência do problema. Quanto mais investirmos em segurança, mais cavalos criaremos. Será mais fácil para os radicais convencerem essas crianças de que estamos em uma guerra na qual elas não têm outra saída senão lutar, que o único ato de coragem que podem fazer é tirar a própria vida para acabar com seus “inimigos”.

É preciso agir na raiz, na causa, na falta de oportunidades, e dessa maneira vai ser muito mais complicado que esse recrutamento aconteça. Devemos dar e facilitar cultura, abrir uma janela de oportunidade em vez de abaixar a cortina para tapar a pouca luz que entra. Assim, serão elas mesmas que vão dizer não.

Se as pessoas se sentem satisfeitas e felizes com suas vidas, não faria sentido esperar vir outra pessoa para dar-lhes segurança e certeza, já que não precisam delas.

Quantas vezes passou pela nossa cabeça, em uma escala menor, que nos sentimos tão abatidos que nos deixamos levar pelas emoções e acabamos tomando as piores decisões que poderíamos ter tomado? Se entendêssemos a outra face do terrorismo, se todos nós fôssemos capazes de nos colocar no lugar dessas crianças às quais julgamos orgulhosamente, estaríamos mais próximos de encontrar a solução para o que está acontecendo.

Nota de edição: devemos lembrar que a psicologia demonstrou que as circunstâncias têm um enorme poder. Que inocentes alunos podem se transformar em verdadeiros tiranos, como, por exemplo, o que aconteceu no experimento da prisão de Stanford ou no experimento de Milgram.

Por outro lado, a intenção desse artigo é levantar uma reflexão sobre as mensagens de “olho por olho” que têm circulado atualmente nas redes sociais. Compreensíveis devido ao impacto emocional do momento, mas distantes de uma possível solução que acabe definitivamente com esse tipo de atentado.


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