Boneca Russa: niilismo e complexidade contemporâneos

Boneca Russa (Russian Doll) é uma série divertida e amena que desrespeita as convenções. Ela ri de tudo e desenha o modelo urbano atual para depois mergulhar na complexidade das pessoas que o habitam. Em forma de loop e com um certo humor negro, descobrimos uma história que vai do riso ao sobrenatural.
Boneca Russa: niilismo e complexidade contemporâneos
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 07 novembro, 2022

Boneca Russa é uma das últimas apostas da Netflix, uma série estrelada por Natasha Lyonne, que também estreia como criadora ao lado de Amy Poehler e Leslye Headland. A série se move entre a sátira, a comédia e o humor negro, mas também aborda questões muito mais profundas. A verdade é que, depois de vê-la, as sensações ficam um tanto estranhas e confusas.

São episódios curtos que mantêm o ritmo e atraem a atenção do espectador. Quando você assiste ao primeiro episódio, não sabe se continua ou não, se vai ser um loop o tempo todo ou se, em algum momento, a trama dará uma guinada radical. E é exatamente isso que o convida a ficar grudado na tela: a incerteza.

Nádia é uma jovem nova-iorquina que acaba de completar 36 anos. É programadora, trabalha no mundo dos videogames e tem problemas com vícios. Assistimos à sua festa de aniversário, mas não por muito tempo; Nádia morre naquela mesma noite de forma repentina. Mas a história não acaba aí, ela ressuscita e volta ao ponto exato onde tudo começou: a sua festa de aniversário.

Veremos o tempo todo um loop em que Nádia morre e é ressuscitada? Sim, mas não, porque Nádia se lembra de que morreu e terá vários finais paralelos.

Apesar da sua estrutura, a série vai revelando informações, nos mergulha em diversas aventuras e brinca constantemente com as nossas dúvidas. Em uma festa infinita e cheia de humor, Boneca Russa nos apresenta uma interessante aventura entre a vida e a morte.

Boneca Russa: caracterizando uma sociedade

Embora a sua divulgação não tenha sido das mais marcantes, a verdade é que a série já conta com os aplausos da crítica. No site do Rotten Tomatoes, responsável por reunir algumas das críticas mais relevantes, Boneca Russa já está perto dos 100% de aprovação, um número mais do que significativo.

Boneca Russa é uma aposta arriscada, parte do sobrenatural para desenhar uma realidade. A série é construída na cidade de Nova York, cidade emblemática que já serviu de cenário para inúmeras séries e filmes.

O modelo urbano, cosmopolita e de juventude tardia com poder aquisitivo parece caber perfeitamente nesta cidade. É que para residir em uma cidade como essa, você precisa de algo mais do que um emprego estável.

A “boemia” atual não está mais configurada em apartamentos baratos em que vivem diferentes artistas. Agora, a criatividade passa por outros lugares como a internet e os videogames; e as excentricidades, de alguma forma, respondem ao consumo. Isso pode ser bastante contraditório, porém, o que vemos na série responde a esse novo modelo de vida.

Diferentemente de outras séries, como Sex and the City, que idealizavam a vida de mulheres modernas e independentes com poder aquisitivo, as mulheres de Boneca Russa se distanciam dos convencionalismos.

Uma aventura

Nádia é carismática, fuma compulsivamente, usa drogas sempre que pode e raramente vai ao trabalho. No entanto, ela pode pagar um apartamento para morar sozinha e não tem dificuldades financeiras.

Os seus amigos também fogem dos convencionalismos e, entre orgias, festas e excentricidades, veem o fluir da vida. Apesar de serem adultos, muitas das suas atitudes possuem um certo aspecto infantil.

Um modo de vida que beira o niilismo, em uma cidade muito frenética e habitada por pessoas que, como Nádia, sentem prazer nos excessos.

O fato de as personagens fumarem, embora à primeira vista possa passar como algo despercebido, como um simples suporte para esta visão de vida, é totalmente inovador. Atualmente, dificilmente encontramos séries norte-americanas em que o tabaco adquire um papel relevante, em que um personagem seja associado de imediato ao cigarro.

O formato de loop entre a vida e a morte, os vícios e a atitude dos personagens desenham uma sociedade muito atual, muito real, e reforçam a ideia do niilismo.

Nada importa muito, vamos todos morrer e as consequências das nossas ações não devem nos preocupar. Dessa forma, os personagens adotam uma certa atitude hedonista diante da vida. Ou seja, se o amanhã não me preocupar, posso fumar, me drogar e me entregar aos prazeres.

Cena da série 'Boneca Russa'

Nádia, por trás da armadura

Toda essa ideia que temos levantado, de alguma forma, começa a desmoronar no momento em que Nádia percebe que as suas ações e decisões podem ter repercussões no futuro.

O loop vai além da vida e da morte para acabar construindo várias realidades ou possibilidades que derivam das ações de Nádia. Se ela morre e volta ao ponto de partida, com certeza há algo pendente, algo que não está fazendo muito bem.

Nádia, de forma cômica, deve superar as armadilhas da morte – desde escadas, carros e vazamentos de gás – para se manter viva o maior tempo possível e resolver todos os seus assuntos. O que parecia uma armadilha do destino começa a fazer sentido. Vamos descobrindo novas ‘camadas’ de Nádia para finalmente percebermos que ela não está sozinha nesta aventura peculiar.

Boneca Russa: o despertar

Os vários ‘despertares’ lembram muito o filme Feitiço do Tempo e servem para nos mostrar a personalidade de Nádia.

Cena da série 'Boneca Russa'

A personagem guarda certas semelhanças com a atriz que a interpreta, a carismática Natasha Lyonne. Lyonne sofria de sérios problemas de dependência e, como Nádia, se viu várias vezes à beira da morte.

Na verdade, os loops servem para construir – ou descobrir – as várias camadas que compõem a personalidade da protagonista. Uma série de conflitos internos, vozes do passado e recordações marcaram a Nádia que vemos na tela.

Sob uma imagem de excentricidade, vícios e verborragia, se esconde muito mais. Nádia é instável e, como o título da série indica, uma boneca russa. O seu próprio sobrenome, Vulvokov, evoca raízes russas, e a ideia da boneca está associada à matrioska. As matrioskas são bonecas que, por dentro, escondem réplicas cada vez menores e, às vezes, menos detalhadas. Essas bonequinhas estão escondidas em uma boneca muito maior.

Nádia, como uma matrioska, não é apenas o que vemos, mas guarda dentro de si um grande número de vozes e ‘pequenas Nádias’ do seu passado. Um conjunto que está em conflito e não é capaz de dialogar, não é capaz de formar uma ‘Nádia’ em harmonia. Por isso, cada um dos ‘despertares’ nos dará pistas sobre a verdadeira Nádia, e será ela quem deverá lidar com o seu passado e encontrar essa harmonia.

Definitivamente, Boneca Russa é uma série muito divertida, capaz de viajar do trágico ao cômico em questão de segundos. Ela ri de tudo, zomba das aparências e viaja pelas profundezas e pela complexidade do ser humano.


Este texto é fornecido apenas para fins informativos e não substitui a consulta com um profissional. Em caso de dúvida, consulte o seu especialista.