Colorir a realidade das crianças é algo bom?

Colorir a realidade das crianças é algo bom?
Alejandro Sanfeliciano

Escrito e verificado por o psicólogo Alejandro Sanfeliciano.

Última atualização: 22 dezembro, 2022

Podemos encontrar vários exemplos de comportamentos na nossa cultura que são voltados para colorir a realidade das crianças. Quando falamos de colorir estamos nos referindo à tendência de tornar menos cinzentos alguns fatos da vida, substituindo uma verdade dolorosa por uma adaptação um tanto quanto suavizada. Por que temos esse tipo de comportamento? Até que ponto é bom para a criança crescer em uma realidade repleta de cores por todos os lados?

Apesar do uso de mentiras para atenuar a realidade ser algo que podemos fazer com pessoas de qualquer idade, fazemos isso com mais frequência quando lidamos com crianças. Um aspecto que diferencia esse comportamento direcionado aos pequenos é que uma parte da sociedade legitima o ato, muitos pensam que colorir a realidade das crianças é algo positivo. Assim, muitas pessoas agem dessa forma e aprovam quem age assim. Quando falamos de adultos a situação já não é mais a mesma, já que a intenção de proteger o outro em muitos casos não possui um argumento convincente para justificar a atitude.

Nesse artigo vamos entrar de cabeça nesse debate, demonstrando todas as opiniões e respeitando cada posicionamento. Para cumprir com esse fim, vamos passar por três aspectos. Em primeiro lugar falaremos dos comportamentos mais típicos relacionados a essa manipulação de verdades que podem ser dolorosas. Em seguida, as razões e motivos que podem produzir essa atitude de modificação dos fatos. Por fim, encerraremos com algumas conclusões em sintonia com todo o exposto.

Filho conversando com o pai

Como tornar a vida das crianças mais colorida

Nós suavizamos as amarguras da vida para as crianças, mas como fazemos isso? Esses comportamentos podem acontecer de maneiras distintas e com finalidades diferentes. Mais especificamente, poderíamos distinguir dois tipos: (1) mentiras ou omissões da verdade sobre as situações duras ou incômodas da vida e (2) histórias fantásticas ou mágicas.

Quando falo de mentiras sobre as situações duras e incômodas, faço referência a quando nós, adultos, ocultamos a informação das crianças com o argumento de que eles não estão preparados para entender aquela situação. Por exemplo, poderíamos fazer isso com situações relacionadas à morte, ao sexo ou à violência. Esses temas parecem não fazer parte da infância, pelo menos idealmente, e sentimos que devemos proteger a criança desses aspectos da vida. Na sociedade atual, no entanto, a informação é cada vez mais fácil e é também cada vez mais difícil conseguir filtrar o que chega até nossos filhos.

Quando eu falo de histórias mágicas me refiro aos contos de fada que rodeiam a vida de uma criança. Todos conhecemos alguns exemplos disso: o Papai Noel, o Coelho da Páscoa, a Fada dos Dentes, etc. Nós adultos fazemos as crianças acreditarem que a realidade é muito mais mágica do que ela realmente é.

Por que faríamos isso?

A primeira pergunta que aparece na nossa mente na hora de decidir sobre a legitimidade dessa forma de agir é a busca de um porquê. Podem existir muitas razões para esse tipo de comportamento, e o mais provável é que estejamos diante de um fenômeno cultural com múltiplas causas. Mas aqui vamos nos preocupar em falar sobre os motivos de mais relevância e peso.

Se perguntarmos a alguém quais são os motivos de ter esse tipo de atitude, o mais provável é que a pessoa nos responda que o faz para conservar a inocência da criança. Isso acontece pois acreditamos que as crianças são mais vulneráveis a situações de estresse. Isso não deixa de ser verdade, já que a capacidade da criança de lidar com as emoções ainda está em desenvolvimento e é, por isso, bem mais limitada.

Criança emburrada

Mas quando olhamos com atenção e exploramos essas verdades incômodas que ocultamos das crianças, acabamos percebendo que na verdade estamos falando de situações que nós mesmos, adultos crescidos, não temos capacidade de gerir. Temas como a morte e o sexo seguem sendo tabus até hoje em nossa sociedade. Ao redor dessas temáticas estão ideias e mitos que podem gerar incômodos em nós mesmos, que nos fazem ter sentimentos de vulnerabilidade e às vezes vergonha. O fato de que nós não temos as respostas claras também é um dos motivos pelos quais contamos uma história distorcida da realidade para as crianças.

Como conclusão, podemos dizer que os adultos tentam colorir a realidade das crianças por fatores socioculturais que nascem de uma má gestão dos temas tabus ou incômodos de forma coletiva. Isso está relacionado com o déficit de inteligência emocional que vemos hoje na sociedade.

Então, tentar colorir a realidade é algo ruim ou bom?

Não há uma resposta determinante. Os especialistas em desenvolvimento infantil ressaltam que há situações nas quais não é recomendável omitir a verdade, como contar histórias nas quais nem nós mesmos acreditamos para as crianças. Um exemplo seria sobre a existência de vida após a morte. Uma boa ideia para se balizar é que não há problema em ser honesto com os pequenos e confessar que há perguntas para as quais nem nós mesmos sabemos as respostas, ou inclusive que ninguém sabe.

Em alguns outros casos o ideal não seria transformar a realidade, mas sim utilizar uma linguagem que seja adaptada para a capacidade de compreensão da criança. Também não estamos falando para inserir as crianças em debates nos quais não estão manifestando interesse – pelo menos ainda. Um relato inteligente é aquele que se adapta, sem mentir e com honestidade, à capacidade de compreensão da criança.

Finalmente, falemos das ocasiões que em que esse comportamento de enfeitar a realidade tem como propósito afastar a criança das emoções negativas. Nesse sentido, em geral esse tipo de atitude leva a uma superproteção da criança da qual deveríamos nos abster. Pense no quão importante é para uma criança aprender a gerir eventuais emoções negativas. Se elas não as sentirem, nunca aprenderão.

Deixemos que eles fiquem com raiva, tristes ou entediados. A criança deve descobrir o que fazer com esses sentimentos. Deixemos que eles se sintam tristes para podermos construir, junto com eles, um relato honesto da emoção, do que aconteceu e de como agir. Não devemos impedir que eles aprendam a olhar para a realidade com inteligência. Devemos deixar que tenham estímulos que coloquem à prova seus recursos, e estaremos lá para ajudar na superação. É importante ensinar a tolerar a incerteza, porque certamente o mundo adulto estará repleto delas.

Por fim, é importante lembrar que não devemos mentir para nossas crianças, mas também não devemos sobrecarregá-los de forma que percam sua doçura. Se realmente queremos dar uma educação digna que promova o melhor desenvolvimento possível da infância, devemos ensinar os nossos filhos a lidar com uma realidade cheia de informações dos mais diversos tipos, com inteligência emocional e capacidade crítica.


Este texto é fornecido apenas para fins informativos e não substitui a consulta com um profissional. Em caso de dúvida, consulte o seu especialista.