Curar feridas significa que o ocorrido não controla mais nossas vidas

Curar feridas significa que o ocorrido não controla mais nossas vidas
Valeria Sabater

Escrito e verificado por a psicóloga Valeria Sabater.

Última atualização: 15 novembro, 2021

Curar feridas emocionais não significa esquecer, significa, acima de tudo, fazer com que elas deixem de controlar nossas vidas. Algo assim exige um processo meticuloso de transformação no qual entendemos que não seremos mais os mesmos, porque a cura não é um retorno, mas uma reconstrução hábil para formar alguém novo, alguém mais forte e mais valioso.

Todos temos feridas que precisam de atenção. Vivemos em um mundo onde existem muitas formas de violência, algumas mais explícitas e outras encobertas e silenciosas. O sexismo, a discriminação, o bullying, a intimidação física ou nas redes sociais, os efeitos da disfunção familiar e até mesmo mensagens culturais sobre a beleza e o sucesso são alguns aspectos que podem nos deixar uma marca.

“Quando a razão é capaz de entender o ocorrido, as feridas no coração já são profundas demais”.
-Carlos Ruiz Zafón-

Nos últimos séculos, a psicologia ocidental tentou curar feridas com sua ampla gama de abordagens e técnicas, obtendo algum sucesso. Esta é uma ciência orientada a partir de sua essência a tentar aliviar essa dor, proporcionar técnicas adequadas com o intuito de melhorar nossos padrões de pensamento e comportamento para alcançar uma mudança, uma melhoria fundamental.

No entanto, nada disso será possível se a pessoa, se o próprio paciente, não quiser se curar. Além disso, o que acontece com muita frequência é que, longe de resolver o problema, o evento específico ou o passado traumático, as pessoas optam por cerrar os dentes, fechar seus corações e avançar sem olhar para o espelho retrovisor.

Essa é uma estratégia ruim, e mais, outro erro que geralmente cometemos é pensar que o tempo cura tudo, que não é necessário mais do que deixar passar os dias, os meses e os anos para que tudo se resolva. No entanto, o tempo não cura nada, o que cura é aquilo que fazemos com esse tempo.

Mulher com galhos de flores

Curar feridas: em busca da dor primária

Ana tem 30 anos e há quase oito meses perdeu seu pai após um derrame cerebral. Seu entorno, seu parceiro, amigos e familiares ficaram surpresos pela forma como ela lidou com o luto. Não pediu licença do trabalho, inclusive, após o funeral, Ana se concentrou de forma quase obsessiva em seus projetos profissionais, trabalhando de forma frenética.

Ninguém a viu chorar, nem expressar qualquer tipo de alívio emocional. Seu comportamento é mais ativo do que nunca, tanto que não para em casa nem por um segundo sequer; é como se tentasse manter-se ocupada o tempo todo para não pensar, para não sentir. No entanto, ela chegou a tal ponto de exaustão e estresse que decidiu procurar um médico para que lhe dê “algo para dormir ou relaxar”. Porém, seu médico decide encaminhá-la para assistência psicológica.

Assim, uma vez analisado o caso de Ana, o psicólogo tem duas coisas muito claras. A primeira é que sua paciente não passou por nenhum tipo de luto. A segunda é que criou um “estado de sobrevivência” tão eficaz que esconde uma profunda dor primária. Ana precisa curar feridas, feridas que talvez vão mais além do que a simples perda de seu pai, eventos traumáticos que podem estar em seu passado e que, agora, com a morte de seu progenitor, foram reativados para formar um “todo” ainda mais conturbado e complexo.

Mulher olhando por janela embaçada

Essa história nos permite entender duas coisas que iremos expor em seguida. Dada a experiência de dor, vazio e confusão que é gerada por um evento traumático, como um caso de maus-tratos, um abuso, uma perda ou qualquer outro acontecimento, é comum que a pessoa tente virar a página, deixar esse evento para trás, esquecer. Para isso, cria um “falso eu”, uma personalidade com a qual se mantém a flutuar.

No entanto, a ferida primária ainda está lá, latente, e pouco a pouco se espalhará para criar outras feridas secundárias (isolamento, transtornos de personalidade, ansiedade, depressão…)

Primeiros socorros emocionais

Há um livro muito interessante intitulado “The Primal Wound” do psiquiatra John Firman, que nos explica algo tão interessante quanto útil. Curar feridas não significa apagar traumas, significa nos habilitarmos novamente como seres humanos e, sobretudo, criar uma conexão empática com essa ferida primária.

Isso pode ser estranho ou até mesmo complexo. Para entender isso, basta lembrar algo: quando uma pessoa vai à terapia, a primeira coisa que perceberá é um entorno empático, um ambiente acolhedor e próximo, onde o psicólogo procura a todo momento se conectar com seu paciente. Agora, algo que o paciente deve alcançar da sua parte é se conectar de forma empática com suas feridas, com suas necessidades internas, aquelas das quais descuidou ou não quis enxergar.

Desta forma, podemos ir pouco a pouco cicatrizando o trauma primário e seus efeitos colaterais com o tempo, com delicadeza e com segurança. Além disso, outro aspecto útil que o Dr. Firman nos explica em seu livro é a importância de saber aplicar a ajuda emocional apropriada a todos esses “arranhões e cortes emocionais” que as pessoas costumam sofrer diariamente. Vejamos alguns exemplos.

5 primeiros socorros para curar feridas

  • Descreva e tome consciência. Um primeiro conselho é não deixar para amanhã o incômodo que sente hoje, e para isso não há nada melhor que saber descrever estados emocionais. Palavras como “hoje me sinto vazio, chateado, machucado, tenho medo, me sinto sozinho, contrariado ou frustrado, etc” podem nos ajudar.
  • O segundo passo é a “não dependência”. Devemos assumir, compreender e aceitar que nenhuma pessoa merece ser vítima de sua ferida traumática, dessa decepção ou desse estado de desânimo persistente.
  • O terceiro passo é a autocompaixão. Ninguém deve nos amar tanto ou se preocupar tanto com nossas feridas quanto nós mesmos. Sentir compaixão é visualizar a dor e entender que deve ser tratada, aliviada.
  • Um bom apoio. Embora desejemos, nem sempre é bom lidar com nossos problemas e arranhões cotidianos na solidão. Contar com um bom apoio para favorecer o alívio emocional é sempre de grande ajuda.

O último passo é a mudança. Curar feridas exige iniciar mudanças, a nível pessoal e em nosso meio, para dar forma a alguém novo. Às vezes conhecer novas pessoas, realizar novos projetos, ou praticar novos hobbies nos oferece incentivos adequados para começar a enfrentar a dificuldade com mais força e mais entusiasmo.

Como diz um velho provérbio chinês, se ajeitamos nosso cabelo todos os dias, por que não fazemos o mesmo com nossos corações? Curar feridas é possível, comecemos hoje mesmo.


Este texto é fornecido apenas para fins informativos e não substitui a consulta com um profissional. Em caso de dúvida, consulte o seu especialista.