(Des)encanto: uma sátira medieval de Matt Groening

A nova série de Matt Groening, (Des)encanto, não começou bem, principalmente por ser ofuscada pela grande sombra de suas séries antecessoras. Em sua nova temporada, ela toma forma e nos proporciona momentos à altura de Groening.
(Des)encanto: uma sátira medieval de Matt Groening
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 05 novembro, 2022

No ano passado, (Des)encanto chegou à Netflix gerando opiniões muito diferentes. O motivo? A série animada foi escrita por Matt Groening, o aclamado criador de Os Simpsons e Futurama. Seus fãs aguardavam ansiosamente pela nova proposta de Groening, embora não soubessem muito bem o que esperar.

A crítica analisou de perto cada aspecto da série e, após um começo um tanto instável, acabou elogiando essa sátira ambientada em uma Idade Média meio às avessas.

(Des)encanto distancia-se temporariamente de seus predecessores. Os Simpsons retrata um presente reconhecível que visa parodiar a sociedade americana atual, e Futurama nos convida a pensar sobre o futuro.

Por outro lado, (Des)encanto nos leva ao passado. Um passado com claras alusões à Idade Média, mas com um componente de fantasia com claras influências mitológicas e cheias de superstições.

Em um reino chamado Terra dos Sonhos, vive a princesa Tiabeanie – Bean para os amigos. Tudo começa quando, após ter concordado em se casar anteriormente, a jovem princesa decide fugir e escapar de suas obrigações matrimoniais, porque prefere cerveja e aventura a se casar com um príncipe que não ama.

Bean embarcará em uma jornada tentando encontrar a si mesma e escapar de convencionalismos, desencadeando infinitas situações catastróficas e loucas. Em sua viagem, ela não estará sozinha. Ao seu lado, estarão Luci, seu demônio pessoal que tentará levá-la para o lado sombrio, e Elfo, um pequeno elfo cansado da vida otimista e alegre de sua aldeia que mergulhará nas trevas e na depressão do mundo humano.

De uma maneira bem humorada, Matt Groening cria um ambiente no qual não nos encaixamos, mas que, no final, acaba agradando. Com sua segunda temporada recém-estreada, revelamos algumas das ideias por trás de (Des)encanto.

Um novo formato

Devo admitir que, a princípio, a ideia de uma nova série de Matt Groening para a Netflix me deixou perplexa. Faz bastante tempo desde que Os  Simpsons e Futurama foram lançados e o público e as tendências em animação mudaram drasticamente. Todos temos lembranças nostálgicas dos melhores anos de Os Simpsons e Futurama, mas hoje as coisas estão muito diferentes.

Futurama foi cancelada – e inclusive incompreendida – e Os Simpsons está longe de sua época de glória e esplendor. Séries como de Uma Família da Pesada (Seth McFarlane, 1999) cresceram um pouco à sombra das criações de Groening, mas acabaram relegando-as e forçando-as a adotar novas formas que não funcionam muito bem em um clássico como Os  Simpsons.

Então, por que a Netflix? Porque significa uma nova forma de criação, mais liberdade para os criadores – tanto no bom quanto no mau sentido. Também há uma clara tendência à serialização. E é precisamente aí que reside um dos problemas de (Des)encanto. 

Mais como uma série

Longe de serem episódios de curta duração e autoconclusivos, (Des)encanto está mais perto de ser uma série comum, com um enredo que se desenvolve progressivamente, com cliffhangers que pretendem prender o espectador e um abuso do humor simples.

O problema é que (Des)encanto não pretende ser sério, e sim uma comédia, e na comédia, menos é mais. Quanto mais curto e condensado, melhor. O espectador não quer ficar grudado à tela, e sim rir.

O humor, por sua vez, tende a cair no absurdo, algo que não era um problema em Os Simpsons e Futurama, porque havia um equilíbrio entre crítica e absurdo. Mas na sátira medieval, o aspecto louco tende a ofuscar o crítico, que não está à altura e não é suficientemente mordaz.

Fazendo comparações

As comparações são inevitáveis e, talvez, se não estivesse à sombra de seus antecessores, (Des)encanto não teria encontrado tantos problemas para se adequar. Em sua defesa, poderíamos dizer que, embora esse novo formato possa confundir o espectador, acaba se mostrando positivo.

À medida que avançamos na história, descobrimos um universo mais complexo, mais divertido e com alguns momentos que atendem às expectativas. Devemos lembrar também que Os Simpsons não brilhou logo no primeiro episódio, mas nos conquistou gradualmente.

Os personagens são bem escritos e as alusões a outras séries – vemos uma clara influência de Game of Thrones – acabam criando uma história que esconde muito mais do que parece. Você pode não gostar de (Des)encanto logo no primeiro episódio, mas acabará ficando preso na metade. Na segunda temporada, a fórmula se repete e tudo finalmente fará sentido.

(Des)encanto: novos temas e mais críticas

Se algo caracterizava seus antecessores, era o fato de abordarem a crítica a partir da paródia. O retrato caricaturesco do presente e do futuro marcou as animações de Groening que, eventualmente, se tornaram clássicas. (Des)encanto não parodia apenas o passado, mas também o presente, pois se adapta às novas exigências do nosso tempo.

Portanto, não é de surpreender que a protagonista seja uma mulher, uma princesa desencantada com seu tempo – veja que redundância – que decide tomar as rédeas de sua vida, embora de maneira catastrófica.

Bean não é uma princesa de conto de fadas. Ela não é a princesa que personifica os valores exemplares da Idade Média. Ela é, na verdade, um verdadeiro desastre. Tudo dá errado e ela semeia o caos por onde passa, tem problemas com o álcool e, fisicamente, também não é a beleza personificada.

Junto com seus companheiros, Elfo e Luci, ela lidera um trio que, às vezes, lembra Fry, Bender e Leela de Futurama – respeitando as diferenças. É um trio que acaba nas mais loucas situações.

A crítica à desigualdade sofrida pelas mulheres é evidente desde o começo, e Bean desafia as regras e segue seus instintos. Nessa segunda temporada, assistimos a toda uma paródia das sociedades medievais – mas também de algumas mais atuais.

(Des)encanto: novos temas e mais críticas

Um rei ridicularizado

A série ridiculariza a figura do rei, o mostra como um fantoche usado por seus conselheiros para seu benefício. Entre eles, se destaca um tipo de culto que alude à Igreja. Nem o rei nem o povo parecem ser muito importantes. Tudo no palácio se move por interesses, enquanto o rei desfruta de refeições fartas em seu trono, totalmente alheio à situação de seu reino.

Superstição e religião se misturam no culto que domina a Terra dos Sonhos. Assim, observamos alguns personagens que não acreditam na ciência, mas na magia; que condenam a bruxaria e dominam a opinião pública à sua vontade.

Dessa maneira, os conselheiros do rei são aqueles que realmente tomam as rédeas da Terra dos Sonhos. Eles se envolvem em uma espécie de ritual de natureza sexual e religiosa, enquanto ditam as normas da sociedade.

A primeira temporada de (Des)encanto foi um aperitivo, uma apresentação da Terra dos Sonhos e das regras que a regem. A segunda temporada, já mais madura, explora mais profundamente tudo que foi intuído na primeira, começa a colocar o dedo na ferida e surpreende com uma crítica que, finalmente, mantém mais reminiscências com o mundo real e o nosso passado histórico.

Como (Des)encanto acaba?

A série se despede novamente com um final que mantém o suspense e nos deixa querendo retomar as aventuras de Bean, Elfo e Luci. Ela o faz sem abandonar uma estética bem cuidadosa que se aproxima do steampunk.

Com uma visão caricaturesca e louca do nosso passado, parece que, pouco a pouco, (Des)encanto  está encontrando o seu lugar. E quem sabe se, no final, ficará na nossa memória… assim como seus predecessores.


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