Ensinamentos do soldadinho de chumbo de Hans Christian Andersen

Faltava-lhe uma perna ao soldadinho de Hans Christian Andersen, porque havia pouco chumbo quando o derreteram. Se havia algo que amava, era a pequena bailarina feita de papel. O que podemos aprender dessa inesquecível história?
Ensinamentos do soldadinho de chumbo de Hans Christian Andersen
Valeria Sabater

Escrito e verificado por a psicóloga Valeria Sabater.

Última atualização: 01 fevereiro, 2023

Dizem que Hans Christian Andersen era filho de um sapateiro e de uma lavadeira e que isso o marcou para sempre. Essa origem humilde lhe permitiu entrar em contato com o claro-escuro da sociedade e com os recantos mais profundos do ser humano. Durante um período de sua vida teve até que mendigar, algo que lhe facilitou encontrar abrigo em sua imaginação para fugir daquela infeliz realidade.

Leitor ávido e dotado de excepcional capacidade artística, conseguiu publicar seu primeiro poema com pouco mais de vinte anos. Esse poema se intitulava: Criança moribunda. Dificuldades, desgostos e adversidades foram elementos que sustentaram boa parte de seu trabalho. E era assim porque sua existência navegou por um certo tempo no oceano da carência e da tristeza.

Os contos clássicos de Andersen foram sutilmente alterados ao longo do tempo para um único propósito. Torná-los mais amáveis e adocicar histórias que buscavam oferecer no passado uma mensagem que, talvez, as crianças destes últimos dois séculos não estejam preparadas para receber. O soldadinho de chumbo é uma daquelas histórias que vale a pena resgatar para explicar os ensinamentos que contém.

“Quando chegarmos ao fim da história, você saberá mais do que faz agora.”

-Hans Christian Andersen-

amigos do soldadinho de chumbo
A história do soldadinho de chumbo nos lembra que nem sempre podemos agir perante o nosso destino.

A história do corajoso soldadinho de chumbo

O soldadinho de chumbo ganhou vida ainda criança em uma caixa de papelão com outros vinte e quatro irmãos. Eram todos soldados experientes, com formas perfeitas e cores bonitas. Por sua vez, ele tinha um defeito: estava sem uma perna. Essas estatuetas foram fundidas de uma velha colher de latão, mas quando chegou a hora de fundi-las, quase não havia material suficiente.

A permanência naquela casa foi feliz por um tempo. Todos os soldadinhos foram colocados em torno de um castelo de papelão, em cuja porta havia uma linda bailarina de papel. Nosso protagonista ficou fascinado por ela, a tal ponto que seu frio coração de lata bateu instantaneamente por ela. Ele se apaixonou imediatamente, especialmente porque achava que aquela garota estava sem uma perna como ele.

Apesar de que esses dias de harmonia não duraram muito. Em uma ocasião, o menino o deixou no parapeito de uma janela, com tanto azar que uma rajada de vento o jogou na rua. O menino, ansioso por recuperá-lo, não hesitou em procurá-lo. Chegou a pisar nelees, mas o soldadinho, estoico como sempre, nem gritou. No final, ele ficou lá por um tempo, até que outras crianças da vizinhança o encontraram por acaso…

As infelizes peripécias do imperturbável soldadinho

As crianças que encontraram o infeliz soldadinho de chumbo traçaram um plano: construir um barquinho de papel e fazê-lo navegar em um riacho que a chuva havia formado na rua. Foi assim, mas com tanto azar que acabou escorregando por um esgoto frio e escuro. Naquele mundo subterrâneo, um rato pediu-lhe pedágio, ninguém podia passar por ali sem pagar antes.

Mas não deu tempo, a correnteza da água era muito forte e quase sem saber como, o soldadinho foi arrastado até desembocar em um rio. Lá, ele se deparou com uma nova e inesperada adversidade: um peixe o acabou engolindo. Aquele parecia ser o fim do homenzinho, mas o destino, caprichoso e também mágico, quis que aquele mesmo peixe servisse de jantar para a família da criança a quem pertencia. Ele voltou para casa, para o seu lar, com sua linda bailarina e seus vinte e quatro irmãos.

Porém, como era recorrente na vida do nosso protagonista, a felicidade durou um suspiro. A certa altura, o menino jogou na lareira sem motivo aparente. O soldadinho de chumbo não sabia o que estava acontecendo… Por que ele estava derretendo? Foi por amor ? Como se isso não bastasse, uma rajada de ar carregou a bailarina de papel para perto dele, consumindo-a instantaneamente nas chamas.

No dia seguinte, entre os restos das brasas e das cinzas, encontraram um coração fundido em chumbo.

O soldadinho de chumbo vive uma série de epopeias trágicas às quais nunca oferece resistência.

Soldado de chumbo coração partido
A história do soldadinho é um triste conto de estoicismo diante da adversidade.

Que ensinamentos podemos obter?

Ao longo das muitas publicações desse conto de Hans Christian Andersen, é comum ver o título sendo alterado. Às vezes é simplesmente O soldadinho de chumbo, outras vezes, O corajoso soldadinho de chumbo, e outras ainda, O soldadinho de chumbo inquebrável. Essas variações constantes se devem, antes de tudo, a uma questão… O protagonista dessa história é um personagem corajoso? Nós o analisamos.

Quando somos arrastados por um destino que não podemos controlar

O soldadinho nem tem chance de ser corajoso, ele se limita a enfrentar tudo que o futuro lhe traz. De fato, algo que nos impressiona nessa história é que nenhum evento é resultado de sua própria ação ou inação. O destino manda, é o acaso e a fatalidade que desenha cada acontecimento que o arrasta aqui e ali sem que ele nada possa fazer para o evitar.

Isso pode chamar nossa atenção. Afinal, ele é um soldadinho de chumbo… Não estaria destinado ao combate, à luta e ao confronto? Não nesse caso. Não na história de Hans Christian Andersen. Uma das lições que aprendemos é que, na vida, nem sempre existe a possibilidade ou oportunidade de ser corajoso ou de agir.

Tolerância à dor e o mecanismo da aceitação

O soldadinho de chumbo é um exemplo de estoicismo. Ele não apenas aceita seu destino, não apenas assume cada fatalidade, cada infortúnio e coincidência caótica. Ele não reage, aceita cada circunstância e também não escolhe pedir ajuda. Um exemplo disso é quando a criança pisa nele ao procurá-lo fora de casa. Hans Christian Andersen nos conta que poderia ter gritado, mas opta por não reagir ou pedir ajuda.

A personagem dessa história é um exemplo da difícil arte da aceitação em meio ao contexto mais adverso.

As limitações nem sempre são a razão de nossos infortúnios

A primeira coisa que descobrimos na história de Andersen é que o protagonista tem uma limitação: está sem uma perna. Não sobrou chumbo quando eles o derreteram, então o homenzinho é diferente de seus companheiros de regimento. Mas será que este fato condiciona as vicissitudes a que está sujeito? De forma alguma.

Sua claudicação não o atrapalha nem representa uma vantagem. Um soldado com duas pernas teria passado pela mesma coisa. Ou seja, muitos dos defeitos que acreditamos ter, na realidade não têm impacto no que nos acontece.

“Eu podia sentir o calor terrível, mas não tinha certeza se vinha do fogo ou do amor.”

O que fica é a nossa essência

O desfecho dessa história é triste, não podemos negar. Porém, para além da inquietação que nos deixa, vamos analisar o que Andersen nos quis deixar como mensagem. A morte do soldadinho de chumbo simboliza um renascimento espiritual, esse em que fica sua verdadeira essência, a do amor.

Além de tudo o que nos acontece, do rumor das fatalidades, cada um deve sempre preservar o que lhe dá força, sentido e transcendência. O afeto é esse material indestrutível que deve persistir sempre.


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  • Andersen, Jens (2005) [2003]. Hans Christian Andersen: A New Life. New York, Woodstock, and London: Overlook Duckworth. ISBN 978-1-58567-737-5.
  • Taylor, J. (1971). The psychology of Hans Christian Andersen’s “Little Tin Soldier.” Menninger Perspective, 2(6), 13–16.
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