Eu, Daniel Blake: o homem comum

O que acontece quando ficamos para trás no sistema? Como o desemprego afeta certas idades ou setores da população? Os governos protegem aqueles que mais precisam? 'Eu, Daniel Blake' narra a sufocante realidade do homem comum, nos mergulha em um beco sem saída do qual será muito difícil escapar.
Eu, Daniel Blake: o homem comum
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 27 janeiro, 2023

Eu, Daniel Blake (2016) é um filme britânico do cineasta Ken Loach, estrelado por Dave Johns e Hayley Squires. Loach é um diretor que se caracteriza por ter uma filmografia marcada por dramas sociais, por um realismo bruto com corantes ideológicos.

O cinema de Loach se baseia na própria realidade e utiliza a mídia audiovisual com um objetivo claro: denunciar as desigualdades, a contemporaneidade e as consequências do progresso que não são vistas na mídia.

No início do século XX, as guerras, as revoluções, a Grande Depressão, etc., desenharam cenários que cobriam todas as capas da imprensa. Os cineastas começaram a concentrar sua atenção na realidade, a se inspirar na leitura de jornais.

O cinema realista tem vários aspectos, tem sido relacionado ao cinema documental e adquiriu conotações diferentes em cada país. Na França, por exemplo, Jean Renoir se destaca e, na Itália, com o neorrealismo, o cinema finca suas raízes na Itália pós-guerra, em um país devastado que nos deu um dos movimentos mais interessantes da história do cinema.

Trata-se de mostrar a realidade como ela é, sem maquiagem, sem ornamentos, simplesmente retratando a sociedade em um determinado momento e lugar. Loach segue os passos de outros autores realistas e usa seu cinema para lançar um discurso ideológico e nos convidar a uma reflexão sobre o mundo ao nosso redor.

Um cineasta britânico que nos deu títulos como Riff Raff (1990), Ventos da Liberdade (2006) e aquele que nos ocupa: Eu, Daniel Blake.

Eu, Daniel Blake: o outro lado da Europa

Europa, o velho continente, um espaço que abriga uma multidão de países, uma infinidade de identidades e culturas. Aquele lugar de conquistadores, de história, de riqueza, mas também de guerra e sofrimento.

Um lugar idealizado, onde o eurocentrismo às vezes nos impede de ver além de nossas fronteiras e até de ignorar as realidades que ocorrem dentro delas. A Europa é sinônimo de cultura, progresso, do antigo e do novo, um continente cheio de oportunidades… ou pelo menos parece.

O Reino Unido é um dos grandes ícones do continente, mas também do mundo. É um daqueles lugares que, para nós que olhamos “de baixo”, impressiona com sua beleza, sua cultura… É o lar de Shakespeare, dos Beatles e até de Harry Potter. O que pode haver de ruim ali?

Eu, Daniel Blake é a história do homem comum, que não se destaca, do vizinho que mora na casa ao lado, do homem que vai comprar pão pela manhã… Em suma, do homem europeu, ou do mundo, de qualquer canto ou lugar, que sobrevive ao progresso como pode.

Por trás do homem comum se esconde o protesto, a dura crítica aos governos, à administração, àqueles que deveriam nos proteger, e no entanto, não o fazem.

Eles querem seres produtivos e consumidores, pessoas que estejam dispostas a dar tudo de si pela empresa, que nunca ficam doentes, que não possuam vínculos. O que acontece diante de um cenário que mudou tanto em tão pouco tempo? O que acontece com uma pessoa que passou dos 50 anos e se vê desempregada e doente?

Daniel Blake é um carpinteiro viúvo que, após sofrer um ataque cardíaco, é aconselhado pelo médico a não voltar ao trabalho. Apesar disso, para o Estado, sua doença não é tão séria a ponto de não deixá-lo trabalhar, e ele terá que conseguir um emprego.

Entre infinitos procedimentos burocráticos, Blake encontra Katie, uma jovem mãe desempregada que mal consegue alimentar seus filhos. Os avanços tecnológicos e um estado extremamente rígido irão dificultar, ainda mais, a situação dos personagens.

O real e o comum

A situação de Daniel e Katie não é a mais comum, mas também não é um caso isolado. Loach tende a mostrar o pior das facetas da sociedade, retratando, neste caso, como um homem comum, com um emprego e uma casa, pode acabar em uma situação de pobreza.

É aí que reside a magia do filme, no fato de que isso pode acontecer com qualquer um, de que todos nós, de certa forma, somos Daniel Blake.

Trabalhar e pagar impostos, comprar uma casa, ter uma geladeira cheia; quando envelhecermos, receberemos uma pensão como compensação… tudo isso é normal, algo que assumimos pelo menos enquanto durar o trabalho. Como cidadãos, temos certas obrigações para com o Estado e, em troca, recebemos tranquilidade e estabilidade.

O Estado precisa de nós e nós precisamos do Estado, até aqui tudo parece uma troca totalmente justa. O que acontece quando perdemos nosso emprego e nos vemos forçados a continuar com nossas obrigações de cidadãos? Como pagar um aluguel se não podemos encher a geladeira? Trata-se de uma situação sufocante que desencadeia a denúncia de Loach.

Eu, Daniel Blake.

Daniel Blake terá que enfrentar a amarga burocracia, deverá lutar para sair daquela situação em que se vê submerso. Ele se encontra em um beco sem saída do qual é quase impossível escapar: sua saúde o impede de trabalhar, mas se ele não trabalhar, ele não poderá viver em uma sociedade em que tudo, absolutamente tudo, é comprado com dinheiro.

O filme mostra o inferno da cidade atual, os subúrbios, os restaurantes sociais e a marginalidade a que algumas pessoas estão sujeitas. E, nesse caso, longe de retratar temas como minorias, ele retrata o homem a pé, o britânico cuja sorte parece ter desaparecido.

Dessa forma, a partir do comum, a partir do nome próprio ao qual o título do filme apela, nos torna participantes de seu sofrimento e nos faz refletir sobre nossa própria situação dentro da sociedade.

Daniel Blake, um personagem real

Seu nome, o nome que ouvimos do título, esse nome tão real e tão comum, Daniel Blake, é a chave da denúncia, é a vítima do governo. Uma vítima que poderia muito bem ser seu pai, seu avô, seu tio ou até você mesmo.

Daniel Blake é um homem de 50 anos, nascido no século XX, quando não havia smartphones e a palavra Internet era uma grande desconhecida. O mundo avançou a passos gigantes, descartou o papel e o substituiu por telas.

Daniel foi deixado para trás, é incapaz de usar um computador e ninguém vai salvá-lo. Se não preencher os formulários, não poderá sair da prisão, mas o fosso digital não entende de desespero. O mal é encarnado pelo governo, as vítimas são aqueles cidadãos que ele não sabia (nem queria) proteger.

Eu, Daniel Blake usando computador.

Um cenário conhecido por todos será o marco da denúncia; as cidades contemporâneas são o locus terribilis em que cidadãos comuns sofrerão a crueldade de seus governantes.

O retrato do funcionário impassível, que faz seu trabalho porque não tem outra alternativa; do homem preso pelo desemprego, pela doença e pela pobreza… Tudo isso rendeu ao filme aplausos do público e da crítica, além da Palma de Ouro do prestigiado Festival de Cannes.

A reflexão que o longa nos traz nunca cai na superfície da indiferença, todos e cada um de nós poderíamos ser Daniel Blake. Todos e cada um de nós somos, inconscientemente, participantes de um sistema cego e surdo diante de nossas necessidades, e que não hesitará em nos descartar no momento em que pararmos de contribuir, seja por uma razão ou por outra.

Não estão interessados ​​em homens doentes de meia-idade, não estão interessados ​​em mães solteiras, não estão interessados ​​em vínculos e não estão interessados ​​no pessoal; a única coisa que importa é a produtividade.

Se você não está dentro, está perdido; se você ficar para trás, será difícil começar de novo. Uma situação sombria, talvez muito triste, mas real, com nome e identidade próprias. É isso que Loach retrata em Eu, Daniel Blake.

“Eu, Daniel Blake, exijo minha consulta com a assistência social antes que morra de fome”.
-Daniel Blake-


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