Hercule Poirot: o detetive que nos ensinou a usar as células cinzentas
Quando pensamos nos romances policiais, frequentemente os associamos aos romances britânicos do início do século XX. Inevitavelmente, nos vêm à mente os seus protagonistas, como Sherlock Holmes, mas o detetive Hercule Poirot não fica muito atrás. Este último homenzinho belga é o tema deste artigo.
Agatha Christie foi a encarregada de dar vida a esse personagem único. Hercule Poirot fez a sua primeira aparição no romance O Misterioso Caso de Styles (1920). A partir desse momento, ele se tornou um dos personagens mais recorrentes da escritora, chegando a protagonizar 33 romances e cerca de 50 contos.
A rainha do crime mantinha uma relação de amor e ódio com o seu personagem; sobre ele, chegou a dizer: “Por quê? Por que eu tive que dar vida a essa pequena criatura detestável, grandiloquente e tediosa? No entanto, confesso que Hercule Poirot venceu. Agora sinto um certo carinho que, embora me custe, não posso negar”.
A fama de Christie cresceu e, ao mesmo tempo, personagens como Poirot e Miss Marple se tornaram muito conhecidos. Alguns de seus livros foram classificados como os melhores do gênero e seu trabalho foi traduzido para mais de 100 idiomas, tornando-a a autora mais traduzida do mundo. As vendas a colocam apenas abaixo de autores como Shakespeare e de obras como a Bíblia e Dom Quixote.
O sucesso com o público nem sempre está ligado à aprovação da crítica; por esse motivo, para muitos, o trabalho de Agatha Christie não deve ser classificado como literatura, mas como subliteratura ou paraliteratura. Em outras palavras, uma literatura projetada para o público de massas. Não há dúvida de que se trata de uma autora facilmente identificável e, em particular, isso se deve a Hercule Poirot.
“A verdade tem o hábito de se revelar”.
– Hercule Poirot –
Descobrindo o detetive Hercule Poirot
Conan Doyle, pai de Sherlock Holmes, era um dos autores favoritos de Agatha Christie. Em seus primeiros romances, identificamos um Poirot que segue a tradição de Sherlock de Doyle e Auguste Dupin de E.A. Poe. No entanto, com o tempo, Christie conseguiu dotar o seu personagem de uma identidade própria, longe de suas influências e dissociando-se da tradição de Doyle.
Não seria justo comparar Poirot com outros detetives do gênero ou tentar encaixar sua sombra no perfil de Holmes. Pelo contrário, ele merece uma análise separada. Poirot é um personagem facilmente reconhecível pelo público, possui um grande número de características distintas que o tornam único e o transformam em um detetive excepcional e peculiar; detestável e adorável ao mesmo tempo.
Um detetive perfeccionista e cheio de manias
Vaidoso, perfeccionista, metódico, extremamente organizado, um amante das formas quadradas e da simetria, um maníaco e, sobretudo, belga, muito belga. Christie concedeu a nacionalidade de Tintin ao seu detetive como resultado do seu contato com refugiados belgas durante a Primeira Guerra Mundial.
Esse perfeccionismo que caracteriza Poirot se reflete na sua aparência física. Hercule Poirot é descrito como baixinho, rechonchudo, com um bigode pontudo e peculiar. O seu bigode é tão perfeito e bem cuidado que chega a ser engraçado. Tudo nele é perfeitamente calculado, até um pouco de poeira em suas roupas o perturbaria, e não há nada que o incomode mais do que um quadro ligeiramente torto.
Um número interminável de manias e extravagâncias levará Poirot a situações verdadeiramente cômicas, que aliviam a estrutura trágica e macabra pela qual o personagem se move. Essa ideia do risível em Poirot rompe, de alguma maneira, com o tema do tolo burlesco; se afasta do homem desajeitado e bonachão que produz risadas, como Sancho Panza. Poirot é um detetive extremamente inteligente, capaz de desmascarar os assassinos mais atrozes somente com a observação e a ajuda de suas “pequenas células cinzentas”. Ninguém consegue escapar de Poirot, um detetive capaz de entrar na psicologia do crime.
Poirot e o crime
A sua obsessão pela perfeição o leva a buscá-la em qualquer situação, mesmo na cena do crime. As obras de Agatha Christie seguem a mesma estrutura: apresentação dos personagens, o crime, investigação e resolução. Os personagens tendem a ser de classes mais altas, os espaços são reduzidos e os crimes motivados por paixões ou dinheiro. Poirot resolve os crimes sem se sujar, mantendo a ordem e a calma, observando e questionando, usando a psicologia e a razão.
Desse modo, ele mergulha nas mentes dos criminosos, se conecta com o leitor e com a psicologia. Christie propõe um jogo: ela deixa todas as peças distribuídas ao longo do livro e nós, como Poirot, devemos organizá-las para que tudo faça sentido. Foi assim que Agatha Christie conseguiu combinar as chaves do “o que o público gosta” e “o que vende”; Ela soube como se conectar com o público, mas não tanto com os críticos.
Hercule Poirot no cinema
Esse tipo de obra, com uma estrutura simples e temas atraentes, costuma ser levado para o cinema. Portanto, não surpreende que tenhamos visto vários atores usando o bigode pontudo do detetive belga. Adaptar um romance de Christie geralmente é sinônimo de sucesso nas bilheterias, mas na realidade, é uma faca de dois gumes que só pode ser um sucesso ou se tornar um fracasso completo.
Por que fracassaria uma versão cinematográfica de um personagem tão conhecido e amado? Precisamente por causa da sua fama, sua singularidade e a facilidade que temos para reconhecer o personagem. Se na tela o Poirot que vemos difere demais do detetive dos livros, o sentimento será de profunda rejeição.
Foi o que aconteceu com o pobre Kenneth Branagh em 2017, com seu Assassinato no Expresso do Oriente. Se você não leu o livro, o filme pode ter o seu encanto, mas se você já conhece o personagem, o detetive de Branagh parecerá tudo, menos Hercule Poirot.
Muita ação, muitas licenças e, acima de tudo, um Poirot muito ágil, magro e sem credibilidade. Poirot nunca teria recorrido à violência, nunca teria se envolvido em situações com muita ação. Ele é um personagem metódico, calmo e descontraído, como os romances de Agatha Christie. Da mesma forma, os fatos narrados em Assassinato no Expresso do Oriente ocorrem em um espaço pequeno e claustrofóbico, com pouca ação e muito diálogo.
Um personagem singular
A chave do trabalho de Christie é descobrir progressiva e dedutivamente, percorrer pequenos espaços bem decorados e luxuosos… Algo que, talvez, não se encaixe muito no cinema de massa do século XXI e, por esse motivo, a versão de Branagh não agradou. Ao mesmo tempo, a sombra de outra adaptação pesava na memória de muitos, a versão de 1974 em que Albert Finney incorporava um grande Poirot.
Talvez a passagem do tempo não tenha favorecido esse detetive. Portanto, ficamos com as interpretações clássicas de Peter Ustinov e, é claro, com o magistral David Suchet, que há anos dá vida a Poirot na televisão. Não é ruim reinventar uma obra, mas diante de personagens tão singulares, pode não ser um grande sucesso. Às vezes, é melhor manter uma boa recordação do que tentar preencher com luzes um local que já é bem iluminado.
Agatha Christie sempre quis acabar com o personagem que a projetou para o sucesso: o insuportável e adorável detetive Hercule Poirot. Por esse motivo, escreveu Cai o Pano, para “assassiná-lo”. A escritora manteve o trabalho em uma gaveta durante anos até que, quando chegasse a hora, as células cinzentas de Hercule Poirot descansassem para sempre. A sua popularidade e o impacto da sua morte foram tão intensos que o New York Times publicou o único obituário da sua história dedicado à morte de um personagem.
“A solução para todos os mistérios se encontra nas pequenas células cinzentas do cérebro”.
– Hercule Poirot –