'Insônia': um filme sobre os fantasmas que não nos deixam dormir
Em 2002, Christopher Nolan dirigiu um thriller intitulado ‘Insônia’ que nos coloca diante de um estranho assassinato no Alasca. Will Dormer (Al Pacino) é um prestigiado policial de Los Angeles que viaja com seu parceiro Donovan para ajudar na investigação do crime brutal que levou à morte de uma adolescente.
Quando eles estão prestes a pegar o assassino, Donovan morre por acidente, e o assassino (Robin Williams) escapa depois de observar tudo o que aconteceu. Will não é capaz de aceitar o que aconteceu e tenta mudar os fatos, inclusive a evidência do crime. O assassino se sente identificado com Will e começa a entrar em contato com ele, chantageando-o. O grande detetive, atormentado pela morte de seu amigo e a culpa que sente, além das constantes ligações, começa a sofrer de insônia.
Quando uma enorme culpa se traduz em insônia
Al Pacino, interpretando Will Dormer, não é capaz de assimilar o acidente que causou e nega o que aconteceu perante os outros e a si mesmo, o que o impede de integrá-lo em sua própria identidade. Ele não quer ou pode se identificar com o evento e aceitar a culpa, embora sua consciência tenha registrado tudo o que aconteceu.
Quando um evento desse tipo é experimentado como algo traumático, é necessário desenvolver um relato realista que nos permita dar sentido ao que aconteceu. Nesse caso, a rejeição e a negação estavam diminuindo suas faculdades básicas, tanto físicas como mentais.
A insônia que não deixa viver
Após o acidente, Will começa a gerar crenças internas como “a culpa não foi minha”. A evitação comportamental e mental do que realmente aconteceu o ajuda a perceber aspectos intoleráveis de seu “eu”, dos outros e do mundo.
Al Pacino interpreta um exemplo claro de como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) pode se desenvolver. Will presenciou um evento extremamente traumático ao qual respondeu com medo, impotência e horror. Após o infortúnio, ele começou a re-experimentar esse momento através de sonhos, memórias intrusivas, flashbacks…
Will sabia que a única solução para resolver o caso era dizer a verdade e libertar-se da culpa, mas preferiu evitar essas memórias e pensamentos do evento e tentou mudar o que aconteceu mentindo. Para construir uma nova história sobre o acidente, começou a criar cognições distorcidas sobre a causa ou as conseqüências do evento traumático, tentando transferir a culpa para outra pessoa.
Para continuar com sua mentira e tornar sua culpa invisível , ele começou a se distanciar dos outros, e sua capacidade de experimentar emoções positivas foi desaparecendo. Uma jovem assistente percebeu a grande mudança de Al Pacino, especialmente a diminuição da capacidade de atenção e da concentração geral causada pela insônia.
A divisão da personalidade diante do trauma
No trauma, a personalidade está extremamente dividida entre dois ou mais subsistemas psicobiológicos muito rígidos que causam problemas de adaptação. Os subsistemas de personalidade prototípica podem atingir diferentes graus de elaboração e autonomia e se tornar PANs e PEs:
- Parte emocional da personalidade (PE): uma alta carga emocional das experiências traumáticas é revivida a nível sensório-motor. Esta parte dirige involuntariamente o foco de atenção para possíveis ameaças, que podem ser super dimensionadas devido ao passado traumático.
- Parte Aparentemente Normal da Personalidade (PAN): uma parte que evita memórias traumáticas e se concentra nas funções da vida diária. Embora a pessoa pareça “normal”, a verdade é que tem sintomas negativos, como distanciamento, insenbilidade e amnésia parcial ou total da experiência traumática.
Essa divisão marcada entre as duas personalidades caracteriza os transtornos pós-traumáticos dissociativos simples, incluindo o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Esta separação entre PAN e PE evita a integração de memórias traumáticas e bloqueia a transformação do evento em memórias narrativas autobiográficas. Ou seja, a pessoa traumatizada precisa ser capaz de contar e dizer a verdade sobre o evento.
Nossa vida é o palco em que atuamos e o script muda o personagem de uma maneira ou de outra. Em suma, é um filme que reflete como uma experiência pode marcar um antes e depois, dependendo de como ela foi integrada à nossa própria história.