O homem sem nome: a reinvenção de um gênero

O cinema faz parte das nossas vidas, deixa uma marca, um legado imortal e indelével. Por mais tempo que passe, os filmes de Sergio Leone continuam a atrair fãs. Clint Eastwood alcançou o sucesso graças a esses filmes, interpretando o inconfundível homem sem nome.
O homem sem nome: a reinvenção de um gênero
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 07 novembro, 2022

Chapéu puído, poncho imortal, charuto eterno e olhar penetrante são algumas das marcas deste misterioso personagem conhecido como “o homem sem nome”. Um homem que mudou para sempre a imagem do herói no Velho Oeste, um personagem trazido à vida pelas mãos de Clint Eastwood.

Encontramos esse arquétipo em “Por um punhado de dólares” como Joe, que na gíria americana pode ser usado para se referir a alguém como “rapaz”, “garoto”. Em “A morte tem seu preço”, ele é conhecido pelo apelido de “maneta” e, por fim, em “O Bom, o Feio e o Mau”, como “loiro”. O seu nome, assim como o seu passado, é um mistério absoluto.

A sua imagem está associada a um gênero que não durou muito tempo, mas deixou uma marca importante na história do cinema. Estamos falando do spaghetti western e de uma das revoluções mais importantes do gênero: o nascimento do homem sem nome.

O spaghetti western

O faroeste americano insistia em nos apresentar heróis cujos valores contrastavam com os territórios por onde se moviam; territórios infestados de índios, bandidos e cidades sem lei.

Na Europa, o gênero era empolgante; em um continente tão antigo onde não havia mais nada a descobrir, encontrar territórios distantes e inexplorados era fascinante.

Num artigo da revista Área Abierta da Universidade Complutense de Madrid, aborda-se a ideia mitificada dos estereótipos e de como esse gênero cativou a Europa. Seguindo a trilha medieval, o western incorporou o arquétipo do herói ao traçar uma linha sólida que distinguia os bons dos maus.

Na Europa, não podíamos mais acreditar em fadas ou seres místicos, mas podíamos acreditar em culturas distantes, em homens selvagens de “pele vermelha”. Os cineastas europeus adotaram o gênero mais americano que existia. Os alemães foram os primeiros a tentar e, aos poucos, a onda do “western europeu” varreu o resto do continente.

Entre as décadas de 60 e 70, começaram a surgir inúmeras produções em que participaram diversos países europeus, entre os quais se destacavam Espanha e Itália. A Espanha, por sua geografia especial, era o lugar ideal para recriar as áridas paisagens norte-americanas.

Sérgio Leone

Essas produções não costumavam ter muito orçamento e geravam rejeição na crítica; por isso, o gênero passou a ser chamado de “spaghetti western”, de forma claramente depreciativa. Porém, um homem conseguiu mudar essa visão: Sergio Leone.

Ele imprimiu a sua identidade nos filmes e inspirou cineastas como Quentin Tarantino, Martin Scorsese e até George Lucas. No entanto, o reconhecimento nem sempre acompanhou Leone e, principalmente nos Estados Unidos, demorou a chegar.

Leone reinventou um gênero e deu a Clint Eastwood, então quase um desconhecido, a oportunidade de interpretar um dos personagens mais icônicos do cinema: o homem sem nome. Ele rompeu com o arquétipo do herói do faroeste norte-americano para nos presentear com um personagem de moralidade duvidosa, misterioso e que atirava não só em índios, mas em qualquer um que cruzasse o seu caminho.

O homem sem nome: rompendo a dicotomia entre o bem e o mal

Na tradição medieval, o herói é apresentado desde as suas origens e os seus valores são exaltados. Essa marca sobreviveu em nossa cultura, e é algo que costumamos ver nos super-heróis dos quadrinhos.

Sabemos tudo sobre o herói e, é claro, ele personifica uma moral arraigada à sociedade em que vive. Serve para nos mostrar honra e nobreza e leva isso ao extremo, à perfeição.

A ideia do herói está profundamente ligada ao momento em que é concebida. Assim, no western, o orgulho da sua história, da conquista do oeste e dos valores da civilização estão muito presentes. Mas isso não acontece no spaghetti western de Leone.

Nos filmes que compõem a famosa Trilogia dos Dólares, Clint Eastwood deu vida ao homem sem nome, um personagem que desfigurou valores e transformou o gênero.

Poderíamos classificar o homem sem nome mais como um anti-herói do que como um herói. Não sabemos nada sobre o seu passado, ele se move por dinheiro e tem uma frieza absoluta. A sua aparência e seu vestuário nos convidam a intuir que ele conheceu várias culturas e sua origem é incerta.

O homem sem nome

Os silêncios tomam conta dos filmes de Leone e se tornam uma marca registrada de seu protagonista. Os personagens não são planos, sabemos muito sobre eles. Um bom exemplo seria Tuco de “O Bom, o Feio e o Mau” ou a trama sombria entre Índio e o Coronel Mortimer em “A morte tem seu preço”.

Herói ou vilão?

O homem sem nome contrasta com o resto dos personagens, cujos interesses, motivações e passado nós conhecemos. Ele é bom ou mau? É um herói ou um vilão?

A dicotomia se rompe, ela se funde no homem sem nome para nos apresentar um personagem que está no meio dessa linha. Parece que a sua única motivação é o dinheiro, e ele não hesita em usar a violência em qualquer situação. No entanto, não podemos dizer que seja de todo ruim.

A sua aparência suja, o seu cenho franzido e sua aparência fria contribuem para criar a atmosfera de estar diante de um homem assustador e totalmente imprevisível. Um arquétipo que se repete ao longo da trilogia e que pode ser modificado, reutilizado e transferido para outros ambientes. É assim que o vimos no filme “O cavaleiro solitário” dirigido e estrelado por Eastwood, em que o protagonista é também um fora da lei que se move entre o bem e o mal e é conhecido como “o pregador”.

Sergio Leone não queria criar personagens nobres e gentis, mas a violência e o desespero tomam conta de seus filmes. Em lugares inóspitos, o que prevalece é a sobrevivência e os interesses pessoais. O homem sem nome não age em defesa dos outros; mostra-se indiferente às injustiças e não salvará ninguém se não puder tirar proveito disso.

O cinema como parte da nossa cultura

Essa frieza de que falamos é emoldurada por um mundo violento, hostil e, é claro, nada alegre. Para alcançar essa atmosfera, Leone apresentava personagens sujos, roupas empoeiradas e gastas, rostos enrugados e assustadores. Conseguiu, assim, proporcionar um realismo maior que contrasta fortemente com a imagem impoluta dos personagens do faroeste norte-americano.

O rosto do homem sem nome é perfeitamente reconhecível, mas Leone se encarregou de retratar meticulosamente todos os seus personagens, mesmo aqueles que só aparecem por alguns minutos em cena. Na verdade, ele foi bastante criticado por exibir altos níveis de feiura. Uma feiura que respira no ambiente, que emoldura rostos atípicos, desgastados pelo tempo e à espera da morte.

Filme de faroeste

Primeiros planos de mãos, pés, rostos e olhares que são eternos; silêncios infinitos e música inconfundível são algumas das marcas de seu cinema. Um cinema em que o bem e o mal são relativos.

O gênero arrastou inúmeras pessoas aos cinemas e o seu sucesso levou a uma exploração excessiva que o faria cair sob seu próprio peso.

Parte da magia desses filmes está na trilha sonora, composta por Ennio Morricone, autor de muitas das inesquecíveis trilhas do cinema. Ele ainda está na ativa aos 90 anos.

Leone e Morricone formaram uma dupla inconfundível e tiveram uma premissa: a música era escrita primeiro, ou seja, antes da cena ser filmada. Dessa forma, é possível alcançar uma simbiose excepcional que vai além da tela.

O próprio Stanley Kubrick admirou o trabalho de Leone em “Era uma vez no Oeste”, e aplicou a mesma técnica do italiano em seu filme “Barry Lyndon”.

Conclusão sobre o homem sem nome

A marca permanece indelével a tal ponto que, no ano passado, foi lançado o documentário “Desenterrando Sad Hill”, que foi indicado para o Prêmio Goya. Nessa ocasião, fomos apresentados à associação homônima encarregada de recuperar o cemitério mítico de “O bom, o feio e o mau” na província de Burgos. O fato é que cinema também é arte, cultura e, é claro, patrimônio. Portanto, devemos contribuir com a sua memória para que não caia no esquecimento.

“Eu durmo tranquilo porque meu pior inimigo vela por mim”.
– O homem sem nome, O bom, o feio e o mau –


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