O que é psicose ordinária?
Neste artigo falaremos sobre “psicose ordinária”, conceito que não aparece nas classificações do DSM ou da CID, mas é frequentemente utilizado na prática psicanalítica. A distinção entre psicose e neurose é clássica. Por outro lado, a psicanálise anglo-saxônica tem muito a ver com o fato de terem sido encontradas categorias intermediárias. A mais conhecida é a estrutura limítrofe da personalidade. Essas categorias intermediárias são muito mais interessantes no nível clínico, pois abordam um modelo dimensional e menos estrutural para explicar o comportamento humano.
A psicose ordinária é uma proposta de definição clínica de Jacques-Alain Miller, apontando que quando não reconhecem sinais evidentes de neurose, pode ocorrer uma psicose oculta, uma psicose velada. Designa um modo de funcionamento típico de sujeitos com estrutura psicótica que não apresentam sinais clínicos evidentes de psicose, de modo que retêm certa adaptação social.
O que é psicose ordinária?
Em muitos pacientes há uma “forma atenuada de psicose”, que ainda está dentro do que chamamos de “transtornos do espectro psicótico”. Este tipo de psicose não apresenta os sinais clássicos de psicose “delírios ou alucinações”, mas podemos apreciar o aspecto psicótico em outras manifestações.
O conceito de psicose ordinária obriga-nos a abandonar as categorias noológicas usuais, ordenadas a partir de grandes síndromes que indicam uma lógica do “tudo ou nada”, para nos concentrarmos nas dimensões do comportamento. A ideia é que muitos casos de psicose que permanecem “latentes” costumam aparecer na consulta. Uma pessoa sempre pode viver com uma estrutura psicótica básica sem que seus sintomas sejam muito marcantes.
Segundo o psicanalista e escritor Gustavo Dessal, esse tipo de psicose apresenta diferentes fenomenologias. Do excesso de normalidade ao aparecimento de uma grave neurose caracteropática. No entanto, está sempre presente o núcleo delirante encapsulado, que o paciente confessa sorrateiramente ou mantém oculto por meio de circunlóquios ou elipses de fala.
Como se manifesta
A clínica da psicose ordinária se manifesta por meio de indicadores muito sutis. Podem ser extravagâncias, um uso particular da linguagem, distúrbios do pensamento ou ataques de angústia não reconhecidos como tal, que surgem como eventos do corpo.
A pessoa também pode encontrar-se socialmente deslocada. Apresenta obstáculos nas relações e com uma rejeição repentina do outro, sem premissas ou história que possam explicar essa desconexão do tempo em que vivem. Nas psicoses comuns, os sinais não são espetaculares, são discretos. Os déficits também não. Por isso, podemos falar nesses casos de loucura normalizada.
Sintomas para detectar psicose comum
Dessal detalha diferentes fenômenos clínicos que indicariam a existência de uma psicose ordinária:
- São pessoas que geralmente carecem de discurso sobre sua história, com ausência de implicação subjetiva.
- Muitas vezes são pessoas cuja vida sexual é inexistente ou apresentam sinais de uma relação lábil com a identidade sexual.
- Frequentemente, o vínculo social é permeado em graus variados por sinais de agressividade, desconfiança paranóica ou passagens ao ato geralmente discretas, mas que evidenciam pontos inequívocos de forclusão.
- Muitas pessoas que consideramos psicóticos comuns tendem a manifestar espontaneamente uma tendência extraordinária a recriar em sua fala um romance “edipiano” pouco filtrado pela censura.
- Dificuldade incompreensível em realizar atividades, supostamente dentro da capacidade da pessoa, e que muitas vezes eram realizadas normalmente no passado, pode ser o sinal de um surto psicótico inaparente. Um exemplo é a impossibilidade absoluta de ir às aulas para alguns adolescentes com desempenho escolar anterior normal.
- A relação com a linguagem também é alterada. Muitas vezes falam a partir de provérbios ou lugares comuns que cobrem o vazio de sua própria enunciação. Também podemos observar, como apontou Eric Laurent, um “uso quase neológico de palavras comuns”.
Os psicóticos comuns camuflariam sua condição na paisagem cotidiana, enquanto os psicóticos extraordinários, ao contrário, teriam limitações muito mais incapacitantes. Assim também mais extrovertido para o observador não intencional e não intencional.
A origem da psicose ordinária
O interesse por novas formas de psicose livres de delírios e alucinações não para de crescer. Há cada vez mais casos que são apresentados em consulta. Pessoas com um funcionamento social que poderíamos considerar aceitável, mas com seu sistema de representação simbólica do mundo completamente desestruturado.
Marie-Hélène Brousse, em artigo intitulado Psicose ordinária à luz da teoria do discurso lacaniana, argumenta que o campo da psicose parece estar mudando hoje. Ele a relaciona ao declínio do papel paterno, o poder do Nome-do-Pai, acompanhado da pluralização de seu papel. No lugar da evaporação do pai vêm as normas sociais. Diante do declínio da lei, proliferam as normas e o senso comum (ordinário). Quando falamos de psicose ordinária, trata-se de comportamento supersocial, de submissão absoluta.
A precariedade simbólica que caracteriza nosso tempo teria, assim, efeitos na clínica. Os algoritmos de apresentação de informações baseados em curtidas são extraordinariamente unificadores (normalizadores). Mas e se a normalidade for vazia? Se não há nada a se opor, a personalidade parece não terminar de se formar. Atinge a “normalidade”, que misturada com a solidão pode se tornar insuportável.
Quando se fala do normal, por exemplo, de uma pessoa normal, há algo de vazio. A clínica que está por vir pode ser, em grande medida, uma clínica do vazio. Um vazio presente nas formas ordinárias da loucura, que não se desencadeia publicamente, mas se esconde em nossos pensamentos e modos de agir.
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- Dessal, G. “Continuidad y discontinuidad en las psicosis ordinarias. Tres preguntas a Gustavo Dessal” en Nodus. L’Aperiòdic Virtual de la Secció Clínica de Barcelona, accesible en http://www.scb-icf.net/nodus/contingut/article.php?art=274&rev=37&pub=1.
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