'O que terá acontecido a Baby Jane': quando o ódio se transforma em arte
Bette Davis e Joan Crawford: duas grandes atrizes, muito talento e uma inimizade para a vida toda. Por que elas se odiavam tanto se, no fundo, não eram tão diferentes assim? Ambas tiveram um relacionamento ruim com suas filhas, seus relacionamentos sentimentais fracassaram e as duas recorriam frequentemente à bebida. Sem dúvidas, foi a inimizade hollywoodiana mais comentada da história. Uma inimizade da qual, no meio de toda essa confusão, tiramos uma joia do cinema: O que terá acontecido a Baby Jane?
Como a vida dessas atrizes já era por si só quase um filme, não foi de estranhar que O que terá acontecido a Baby Jane tenha feito tamanho sucesso e que, inclusive hoje em dia, continue sendo considerado um clássico. Atualmente, esse filme voltou aos holofotes ao ser redescoberto por alguns jovens graças à série FEUD: Bette and Joan, que recria a inimizade de ambas as atrizes e os problemas que elas viveram durante as gravações.
É verdade que os jovens de hoje em dia têm uma certa relutância com os filmes em preto e branco. Parece que um filme tão antigo não nos transmite alegria e que o esforço necessário para assistir em preto e branco é demais para nós. No entanto, parte da magia desses filmes reside, exatamente, na ausência de cores.
Ódio e terror
Quando pensamos em filmes de terror atualmente, nos vêm à cabeça imagens de possessões demoníacas, efeitos especiais, casas assombradas e cenas com muito sangue. Tudo isso começou a partir dos anos 70, coincidindo com a estreia de filmes como O Exorcista, que transformaria para sempre os filmes de terror.
Até essa época, o grande mestre do terror tinha sido Alfred Hitchcock. A maioria dos filmes tinha sido gravada em preto e branco e nós estávamos acostumados com outro tipo de terror, mais sutil, mais psicológico, no qual quase todo o peso recaía na interpretação dos atores, na trilha sonora e em sugerir sem mostrar.
“Bette Davis roubou minhas melhores cenas. Mas o engraçado é que quando vejo ‘O que terá acontecido a Baby Jane?’ de novo, me dou conta de que ela roubou minhas cenas porque parece uma paródia de si mesma, e eu uma estrela”.
-Joan Crawford-
Hoje em dia tudo isso mudou, e para muitas pessoas seria difícil enxergar em O que terá acontecido a Baby Jane um filme de terror. No entanto, naquela época assim era considerado. E a verdade é que não são necessários tantos efeitos especiais para que Bette Davis nos atormente com o olhar, para sentirmos angústia quando Blanche (Joan Crawford), presa a uma cadeira de rodas, tenta desesperada chamar atenção da vizinha ou pegar o telefone para pedir ajuda.
Existe alguma coisa mais terrível do que o ódio? Se alguém nos odeia, essa pessoa será capaz de qualquer coisa. Ainda mais se for perdendo o juízo, como acontece no filme. O medo e a angústia do filme recaem nesse ódio, no rancor e na eterna rivalidade. Quando odiamos podemos cair na irracionalidade, não nos importamos com o mal que podemos causar e raramente pensamos nas consequências.
‘O que terá acontecido a Baby Jane’: duas irmãs e duas atrizes
O que terá acontecido a Baby Jane conta a história de duas irmãs que tiveram seus anos de glória e que caíram no esquecimento. Blanche vive presa a uma cadeira de rodas e depende da sua irmã mais nova. Jane (Bette Davis), a mais nova, há muito tempo perdeu o juízo por causa da culpa que sente por ter deixado sua irmã paralítica e vive revivendo na própria cabeça seus anos de glória, sentindo que pode voltar a ser criança de novo e cantar e dançar ao lado do seu pai enquanto o público os admira.
O ódio entre as duas, o rancor e o ego são os principais protagonistas do filme. Baby Jane começa com uma pequena Jane artista, egocêntrica e mimada pelo pai que trata todo mundo mal, inclusive sua família. Do outro lado está a irmã mais velha, Blanche, que a observa ao lado da mãe e que mal fala e se sente discriminada. Vemos que esse tratamento especial que Jane recebe vai transformar Blanche em uma mulher forte, capaz de fazer mais sucesso que a irmã, tanto sucesso que se transforma em uma grande estrela do cinema.
“Não se deve dizer coisas ruins dos mortos, apenas coisas boas. Joan Crawford está morta.”
-Bette Davis-
Jane, pelo contrário, cai no esquecimento para quase todos os mortais. A verdade é que lhe falta talento e ela vai começar a odiar a irmã por ter roubado seu protagonismo. Blanche e Jane são duas eternas rivais. Apesar de Blanche aparentemente mostrar compaixão pela irmã, pouco a pouco vamos descobrindo que nem sempre foi assim. O filme nos mostra cenas bastante perturbadoras, como as refeições que Jane prepara para a irmã ou a música I’ve written a letter to daddy.
A rivalidade e o ódio transcendem as telas e, talvez, seja porque a história de Blanche e Jane não é tão diferente da de Bette e Joan. O ódio, transformado em arte, vira algo digno de admiração quando assistimos ao filme. Um ódio que, além disso, foi totalmente real. Muito se fala sobre o que aconteceu no set de Baby Jane. A máquina de Coca Cola instalada por Davis para competir com a Pepsi de Crawford. O tapa real de Davis em Crawford em uma cena. Ou ainda o momento em que Crawford colocou pesos na sua roupa numa cena em que Davis teria que arrastá-la.
A rivalidade foi tanta que Crawford subiu ao palco para receber o Oscar em nome de Anne Bancroft pelo prêmio de melhor atriz, categoria em que Davis estava indicada por Baby Jane. Crawford roubou, assim, o protagonismo da noite de Davis.
FEUD: Bette and Joan
Recentemente, essa rivalidade foi apresentada na televisão na série FEUD: Bette and Joan, na qual as duas são interpretadas pelas veteranas Susan Sarandon e Jessica Lange, respectivamente. A série, dirigida por Ryan Murphy, nos transporta ao set de gravação do filme e nos mostra a outra face da moeda, a dos meios de comunicação e da indústria de Hollywood da época. Indústria na qual as mulheres passavam a um segundo plano e mal tinham oportunidades. Menos ainda quando a juventude e a beleza já tinham desaparecido das suas vidas.
Na série vemos que, talvez, essa inimizade tenha sido fortemente alimentada pela imprensa, que parecia estar mais interessada nos insultos trocados pelas atrizes do que na profissão delas. Talvez, se as coisas tivessem sido de outra maneira, elas não teriam sido tão rivais. A verdade é que Hollywood se interessava por essa inimizade. Era a propaganda ideal para vender um filme que não tinha orçamento tão alto nem um diretor tão aclamado (Bob Aldrich).
A série FEUD conseguiu resgatar alguns dos momentos mais interessantes dessas duas estrelas, conseguindo trazer Baby Jane de volta aos holofotes. Por outro lado, além de resgatar as estrelas Davis e Crawford, a série conta com um elenco excepcional, destacando Sarandon e Lange, que, assim como as atrizes que interpretam, estão em plena meia-idade, o que não significa um impedimento para que continuem demonstrando que não perderam o talento.
O que terá acontecido a Baby Jane queria resgatar duas mulheres que já não geravam interesse no público mais jovem: elas já tinham uma certa idade e suas carreiras estavam estagnadas. Por isso Baby Jane era uma proposta arriscada e, para garantir o sucesso, tinha que ser vendida com mais alguma coisa. Neste caso, alimentando e destacando a inimizade das duas grandes estrelas.
O ódio, assim como o amor, pode nos transformar em seres irracionais. Os dois podem modificar as nossas percepções, de maneira que elas acabem se ajustando mais ao que queremos ver do que ao que existe na realidade. Nesse sentido, em Hollywood não importava a felicidade nem a moral. O importante era, como em quase todas as grandes empresas, vender o produto.
“Quando odiamos alguém, odiamos na imagem dessa pessoa alguma coisa que está dentro de nós.”
-Hermann Hesse-