Sweeney Todd, o prazer do mistério
No meio do caminho entre o fictício e o real, chegou Sweeney Todd, um personagem da Londres vitoriana que continua envolto em uma nuvem de mistério.
O mistério, fatos inexplicáveis que fogem da nossa compreensão, que enchem as primeiras páginas dos jornais mais sensacionalistas e que nutrem a produção cinematográfica e literária. Sempre buscando um “baseado em fatos reais”.
Por mais chocante que seja a trama, queremos acreditar nessas histórias que enchem as salas de cinema. Sweeney Todd foi real ou não? É apenas um musical ou há algo mais? Por que ele matava?
A verdade é que é difícil encaixar todas as peças desse quebra-cabeça. É difícil porque se trata de uma história que alimentou muito bem o imaginário coletivo, que deu lugar a filmes, produções literárias, etc.
O mito se mistura com a verdade, a fantasia com a história… E o resultado? Um dos mistérios mais interessantes e assustadores da história de Londres.
A origem do mistério de Sweeney Todd
Sweeney Todd surgiu na obscuridade de Londres, a mesma Londres na qual outros assassinos, como Jack, o Estripador, semeavam o terror. O cenário é perfeito para esse singular barbeiro, e a história é realmente apropriada para essa época.
No leste de Londres reinavam a fome, a miséria e as doenças, havia problemas de superpopulação e as condições eram insalubres.
Segundo a lenda, Todd era um barbeiro que degolava suas vítimas após tê-las barbeado. Através de um túnel, levava os cadáveres até o comércio de tortas da Senhora Lovett, que os utilizava como recheio para as tortas, as quais acabaram por se tornar as melhores de Londres.
Envolto em mistério, Sweeney Todd permanece muito vivo graças à infinidade de obras que foram feitas sobre ele e, atualmente, graças ao filme do ano de 2007 dirigido por Tim Burton. No entanto, qual é a verdadeira origem da lenda?
Sweeney Todd, o terror de Londres
A época vitoriana foi marcada por grandes mudanças, como a Revolução Industrial, mas também pelas doenças (febre tifoide e cólera), pela marginalidade e pela prostituição.
Enquanto a Rainha Vitoria I estabelecia normas que reprimiam as condutas sexuais, a prostituição imperava nos subúrbios de Londres. Fome, drogas, prostituição, pobreza e bordéis contrastavam com os grandes avanços científicos e tecnológicos da época.
Os valores vitorianos estavam profundamente ligados ao puritanismo, e a religião desempenhava um papel fundamental. Começava a surgir uma certa repulsão pelos vícios, pela preguiça, pelo sexo… Tudo isso provocou uma forte fragmentação entre as classes sociais.
O puritanismo, além disso, representava repressão; a ocultação dos desejos mais íntimos, de tudo o que estava relacionado ao sexual. Mas toda essa repressão não poderia ser mantida para sempre. Os desejos e os traumas da sociedade vitoriana iriam se manifestar no subconsciente.
Jacques Lacan brincou em uma ocasião dizendo que Freud não teria existido se não fosse pela sociedade vitoriana. O que Lacan quis dizer era que os estudos de Freud foram tão produtivos, exatamente pela repressão.
Por não poder manifestar um desejo, e nem sequer verbalizá-lo, tudo aquilo considerado vício estava sujeito a se manifestar por baixo do nível de consciência.
A Londres vitoriana da aristocracia contrastava extremamente com a dos subúrbios mais ao leste, onde a fome, as doenças e a pobreza davam lugar aos vícios.
A produção literária da época
A prostituição era cotidiana, a criminalidade crescia e tudo isso deu lugar a uma série de mistérios e produções literárias que ainda perduram atualmente.
O fascínio pelo progresso, pela medicina e pela ciência caracterizou a época vitoriana e, desse modo, conhecemos títulos como O Médico e o Monstro.
Frente à literatura culta, surge também uma vinculada ao popular, os penny dreadfuls, publicações periódicas muito econômicas e de baixa qualidade literária. Geralmente, essas histórias tinham um caráter misterioso ou paranormal. Por isso, fizeram muito sucesso entre a população londrina.
The String of Pearls é um penny dreadful da metade do século XIX. Nele, somos apresentados ao temível barbeiro Sweeney Todd.
A história começa com estranhos desaparecimentos que apontam para a barbearia de Todd. A autoria de The String of Pearls ainda é um mistério, embora haja quem afirme ser Thomas Prest, autor que se inspirava em crônicas de acontecimentos reais dos jornais.
A libertação do subconsciente
Com o passar do tempo, foram feitos muitos musicais e filmes que ainda hoje são representados em teatros. Em 2007, com a direção de Tim Burton, chegou aos cinemas Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet.
Não foi a primeira vez em que o personagem apareceu nas telonas, pois já o havia feito em 1936. A versão de Burton foi inspirada no musical de Stephen Sondheim e apresenta um Sweeney Todd vingativo, obscuro e cheio de rancor.
Todd havia sido enviado aos Estados Unidos para cumprir uma pena injustamente, conquistando assim a empatia do público. Todd volta a Londres para se reencontrar com sua mulher e filha, mas sobretudo para se vingar do juiz que o condenou a esse horrível destino.
Por meio de flashbacks, assistimos a um passado feliz, em que Todd era um barbeiro respeitado e tinha uma família que amava. Essas cenas passadas contrastam profundamente com a escuridão e a decadência da Londres do presente, e com a própria escuridão que o personagem evoca.
Todd reabre a sua barbearia com a ajuda da Senhora Lovett, que utilizará os cadáveres em suas tortas. No filme, além de um cenário absolutamente esmagador, observamos também outros elementos característicos da época, como o trabalho infantil.
Vemos, por exemplo, o personagem de Tobias Ragg, uma criança que trabalha e acaba ajudando a Senhora Lovett. Esse fato é fundamental para entender o período e a literatura da época.
Não podemos nos esquecer de que Oliver Twist foi um romance em folhetim publicado na metade do século XIX, e que trata exatamente dessas questões com muito humor negro.
O humor negro de Sweeney Todd
O humor negro é um dos pontos principais de Sweeney Todd, pois trata da atrocidade com um certo toque humorístico. O canibalismo é justificado com a fome, e o assassinato com a vingança.
Esse humor negro proposto pela obra nos faz retomar a ideia do subconsciente que comentamos no início. Ar istóteles já alertava que o público gostava das tragédias gregas porque propunham temas proibidos, tabus.
Se passarmos muito tempo sem comer, é provável que sonhemos com uma deliciosa refeição. E se essa sensação não for saciada por muito tempo, provavelmente vamos passar a ter pensamentos que, em uma situação normal, consideraríamos irracionais.
Em épocas em que a fome reina, são necessárias histórias que permitam a liberação desses impulsos do subconsciente que justificam “matar para comer”.
Podemos ver um exemplo disso em João e Maria, que é publicado em uma época de fome para um público adulto. Diferentemente da versão atual, no original não é uma bruxa que quer comer as crianças, mas a própria mãe.
Desse modo, temos uma infinidade de manifestações que justificam certos atos que consideramos proibidos, dignos das mentes mais perturbadas.
Sweeney Todd dava uma solução para o problema da superpopulação e, ao mesmo tempo, da fome. O subconsciente se manifesta na literatura e, ao mesmo tempo, o leitor experimenta uma espécie de purificação.
A questão é que Sweeney Todd dá origem a uma infinidade de tabus, de desejos proibidos. Tudo isso unido ao mistério de se a lenda foi ou não real certamente alimentou seu sucesso.
Parece que sentimos uma certa atração por esse tipo de fato e, por meio do humor, parece menos incômodo admitir nosso apreço pelo terror, pelo obscuro. Os tabus são permitidos nas telonas; nosso subconsciente se liberta e se deixa levar.
“Há um grande buraco no mundo, como um grande buraco negro. E está repleto de gente cheia de merda! E os vermes do mundo moram lá!”.
-Sweeney Todd-