A metáfora de Lete e Mnemosine na neurociência

Conta a lenda que no Hades havia dois rios: Lete e Mnemosine. Quem bebesse do primeiro esqueceria de sua existência, quem bebesse do segundo, lembraria de tudo. Essa história evoca uma função muito importante do nosso próprio cérebro...
A metáfora de Lete e Mnemosine na neurociência
Valeria Sabater

Escrito e verificado por a psicóloga Valeria Sabater.

Última atualização: 18 maio, 2023

Esquecer informações às vezes é tão ou mais importante do que lembrá-las. No entanto, muitas vezes ficamos frustrados porque o cérebro confunde dados, experiências e imagens que não podemos recuperar com clareza. Certos rostos desaparecem e até temos dificuldade em localizar onde conhecemos certas pessoas, onde guardamos as chaves ou o nome daquele hotel onde nos divertimos tanto.

A verdade é que vivemos num mundo que nos transmite a ideia de que a memória é um reflexo da saúde cognitiva. É a clássica função executiva que mais exercitamos na escola. Nós memorizamos para adquirir novas informações, para aprender e passar nos exames, mas com o tempo… Algumas dessas informações se desvanecem e desaparecem como fumaça escapando pela janela.

Esquecemos por um princípio de eficiência cerebral: o que não é usado é eliminado e isso também é saúde. É assim que o sutil equilíbrio neurológico que cuida de nossos recursos mentais é mantido e otimizado. Porque além do que muitas vezes insistimos, o cérebro não é um computador. É um órgão com capacidades limitadas que precisa economizar.

O esquecimento nos permite viver melhor e isso evoca uma bela lenda grega que exemplifica muito bem esse processo de lembrar e apagar.

Descartar detalhes inúteis é um princípio básico da eficiência cognitiva para nossa sobrevivência.

árvores representando a metáfora de Lete e Mnemosyne
Esquecer é bom para a memória.

A metáfora de Lete e Mnemosine: em que consiste?

A mitologia grega e também o livro A República de Platão conta que no Hades havia dois rios: Lete e Mnemosine. O primeiro provocava o esquecimento em quem bebesse dele e o segundo favorecia a memória. Em algumas inscrições funerárias encontradas desde o século IV a.C., dizia-se que os mortos bebiam do rio Lete para esquecer suas vidas e assim não conseguirem se lembrar de suas existências passadas quando reencarnavam.

Por sua vez, Platão explicou que na Grécia havia grupos que praticavam a religião dos mistérios. Seus iniciados foram convidados a beber do rio Mnemosine para alcançar uma suposta iluminação. Lembrar cada detalhe de suas vidas presentes e passadas foi percebido como uma forma de revelação. Quando, na realidade, tal ideia, se pudesse se concretizar e fosse verdadeira, nos deixaria loucos.

O cérebro não está preparado para armazenar cada informação, detalhe, imagem, palavra ou experiência. Além do mais, os seres humanos e também os animais precisam esquecer para lembrar. Qual é a razão de tal paradoxo? Nós o analisamos.

Toda forma de organismo é programada para esquecer informações sem importância. É assim que novos aprendizados são estabelecidos e a sobrevivência é favorecida.

Lete, esquecer para nos desenvolver melhor

Os gregos pensavam que o efeito de beber do rio Lete durava até a primeira infância. Isso explicava por que as pessoas não conseguem se lembrar do seu nascimento ou dos primeiros dois ou três anos de vida. No entanto, se uma criança não se lembra de seus primeiros aniversários, é devido a um processo tão necessário quanto fascinante: a neurogênese cerebral.

Antes do nascimento e durante os primeiros meses de vida, os bebês produzem um grande número de neurônios. Aos poucos, vão aparecendo as primeiras sinapses e a poda neuronal. Ou seja, as conexões sinápticas são removidas para moldar um cérebro mais especializado e eficiente. Nesse processo, memórias são apagadas, mas maior força e agilidade cognitiva são alcançadas.

Na neurociência, o esquecimento é um mecanismo ativo que começa a funcionar desde muito cedo.

Toda espécie que tem memória esquece

A metáfora da neurociência de Lete e Mnemosine aponta que todo ser vivo que tem memória deve esquecer para sobreviver. Assim, um estudo realizado no The Scripps Research Institute Florida, por exemplo, destaca algo interessante. Se a dopamina é essencial para estabelecer memórias e aprendizagem, também é essencial para promover o esquecimento.

Isso aparece tanto em humanos quanto em moscas das frutas (Drosophila melanogaster). Mamíferos, répteis, pássaros, peixes, insetos e até mesmo fungos apresentam a função do esquecimento como um de seus mecanismos mais básicos.

Tanto é assim, que figuras como o psicólogo cognitivo Oliver Hardt, da McGill University, em Montreal, no Canadá, apontam que todo organismo, por mais simples que seja, deve deletar informações constantemente. Só então ele pode se adaptar melhor ao seu meio.

Eliminar o artificial, lembrar-se do essencial

Uma coisa que os especialistas em criminalística e psicologia forense sabem bem é que uma testemunha raramente se lembrará de um evento com precisão absoluta. Nessas experiências, a metáfora de Lete e Mnemosine é cumprida. Ou seja, você tem que esquecer certos dados para lembrar (priorizar) outros. Assim, a falta de memória fotográfica e exata cumpre um propósito adaptativo tão lógico quanto eficaz.

Pensemos na pessoa que sofre um assalto com agressão. Se lembrasse da cor dos cadarços, do rasgo no jeans de seu agressor, do som que sua jaqueta fazia quando se movia ou do ângulo do sol refletido nele, estaria armazenando dados inúteis em seu cérebro.

O cérebro só quer reter as informações essenciais de uma experiência para estar preparado para situações futuras. O resto é artificial. Não o ajuda saber de que cor era o cabelo do delinquente (à polícia sim).  Estará mais interessado em estabelecer o contexto em que esse evento ocorreu para estar preparado.

Pessoas que “bebem” de Mnemosine (hipertimesia)

A hipertimesia ou síndrome hipertimética define uma condição rara na qual uma pessoa é capaz de se lembrar de boa parte de suas experiências de vida com detalhes excepcionais. Vale ressaltar que a incidência é muito baixa na população e que, em 2005, a Universidade da Califórnia publicou um estudo descrevendo o caso de uma mulher.

Poderíamos dizer que os hipertímicos beberam das águas do rio Mnemosine. Sua memória não responde a nenhuma técnica mnemônica, mas é automática e espontânea. Isso pode parecer um presente fora do comum, mas não é. Aqueles que apresentam essa particularidade apresentam certas características semelhantes ao autismo.

Além disso, esses homens e mulheres sentem-se mentalmente exaustos, o que prejudica seu desempenho cognitivo. Lembrar dados, cenas e experiências de forma involuntária e constante é algo que vivem como se fosse um fardo. Não são gênios nem apresentam uma inteligência acima da média, muito pelo contrário.

As pessoas com hipertimesia passam muito tempo pensando no passado e são incapazes de controlar as lembranças que vêm à mente. Isso os impede de se concentrar na realidade.

Cérebro de uma criança iluminada representando a metáfora de Lete e Mnemosyne
Esquecer e lembrar formam um equilíbrio perfeito que preserva nossa eficiência cognitiva.

A memória (Mnemosine) facilita nosso aprendizado e adaptação ao meio. Graças a ela adquirimos experiências e nos atualizamos dia a dia em conhecimento e sabedoria. Porém, o esquecimento (Lete) é o que nos permite avançar como espécie ao modelar um cérebro mais ágil, mais eficiente, capaz de armazenar informações valiosas e eliminar as que não são muito úteis.

Na balança está o nosso sucesso cognitivo, nesse confronto de forças está escondida a nossa sobrevivência.


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