O abuso de remédios para melhorar o rendimento e a cognição

O abuso de remédios para melhorar o rendimento e a cognição
Julia Marquez Arrico

Escrito e verificado por a psicóloga Julia Marquez Arrico.

Última atualização: 22 dezembro, 2022

O consumo de remédios foi amplamente normalizado ao longo das últimas décadas. Medicamentos de todos os tipos são utilizados para que possamos realizar tarefas de nosso dia a dia sem nenhuma interferência externa ou do nosso corpo. Por exemplo, tomamos um analgésico para evitar uma dor de cabeça. Isso é absolutamente normal. Mas uma das consequências disso é que o abuso de remédios está se tornando algo cada vez mais comum. Ou seja, estamos deixando de tomar medicamentos apenas quando eles são realmente necessários para consumi-los de maneira constante.

Atualmente, uma das situações em que as pessoas estão utilizando remédios sem necessidade é quando elas desejam aumentar seu rendimento intelectual. O abuso de remédios com esse objetivo não é recente, e já existe desde os anos 50 ou 60. O que é novidade, na verdade, é que nos últimos 10 anos essa prática ganhou as escolas e universidades de maneira espantosa.

Há um documentário no Netflix que fala exatamente sobre essa situação. Ele se chama ‘Take your Pills’, que na tradução para o português quer dizer ‘Tome suas pílulas’. No filme, especialistas explicam como esses remédios são utilizados para o controle dos sintomas do TDAH, para a melhora do rendimento intelectual, e expõem todos os perigos para a saúde que esse uso implica.

Nesse artigo, abordaremos o que o abuso de remédios para melhorar o rendimento e a cognição pode causar. Também falaremos das possíveis consequências negativas para a saúde – tanto física quanto mental – dessa prática. Do mesmo modo, refletiremos sobre que papel o sistema educacional atual tem nessa situação toda. Por exemplo, qual é a sua influência na alta taxa de diagnóstico do TDAH, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade.

A alta taxa de diagnósticos de TDAH

No documentário ‘Take your Pills’, podemos entender que existem diversos fatores no sistema educacional que facilitam a demanda para que muitos alunos tomem medicamentos quando, na verdade, não precisam. Em primeiro lugar, descobrimos que o fator mais importante para o abuso de remédios no contexto educacional é o diagnóstico massivo de TDAH.

Esse transtorno é amplamente conhecido nos dias de hoje, o que funciona como um dos aspectos para que existam tantos falsos positivos. Por ser uma doença muito “popular”, muitas pessoas e profissionais da saúde acabam diagnosticando a condição mesmo que a pessoa não a tenha realmente.

Criança com TDAH

Os sintomas do TDAH são estimulados, pelo menos em parte, pelo modelo educacional atual. As crianças e os adolescentes estão crescendo em um mundo com uma superestimulação visual, auditiva e tátil. Eles já nasceram nesse mundo, inclusive. Não é raro ver crianças cada vez mais novas passando seu tempo com eletrônicos como celulares, tablets e videogames.

Ao chegar ao sistema educacional formal, essas crianças se percebem em um meio que é absolutamente entediante. Dito de outro modo, se eles estão acostumados desde cedo a um meio com altas demandas de estímulos, seus cérebros também estão. Então, em um dado momento, pedimos a eles que permaneçam quietos e sentados, prestando atenção durante horas a uma situação muito pouco estimulante. Por exemplo, um professor explicando algo em uma lousa.

Nessa situação, muitos meninos e meninas acabam tendo problemas para se controlar, controlar seu comportamento e sua atenção. Então, eles são diagnosticados com TDAH. Na verdade, estão mostrando uma resposta normal a um modelo educacional que não foi pensado para se adaptar às demandas dos novos alunos, que são nativos de um mundo digital.

O mundo inteiro está mais dinâmico, mais virtual, enquanto o sistema educacional é o mesmo há mais de 100 anos. Tudo isso gera uma série de problemas, entre os quais está esse diagnóstico massivo desse transtorno da atenção, e o consequente abuso de remédios na tentativa de controlar a situação.

A cultura do esforço e a competitividade no ambiente educacional

A cultura do esforço e da competitividade é outro dos fatores que motivam o abuso dos remédios para melhorar o rendimento e a cognição. Se unirmos a isso o estilo de vida da sociedade em que vivemos, um estilo individualista, teremos como resultado um contexto altamente competitivo. Isso faz com que, diante de uma maior dificuldade para se destacar, as pessoas acabem recorrendo a uma ajudinha externa.

Dito de outro modo, as pessoas que não conseguem se destacar mesmo com seu esforço, seja por características próprias, ou por condições externas de sua vida, acabam sendo engolidas pela tentação de uma medicação estimulante como uma maneira simples de solucionar seus problemas e dificuldades.

Todos os estudantes são avaliados a partir de um mesmo patamar. Por isso, quem tiver dificuldade ou necessidades especiais será sempre prejudicado por partirem todos de uma suposta igualdade de condições que justifica critérios de rendimento e avaliação homogêneos.

Nesse sentido, o abuso de remédios está mais presente naquelas pessoas que precisam de mais tempo para aprender e, por isso, experimentam mais dificuldade em alcançar um alto rendimento. Também está envolvido nesse abuso quem não pode se dedicar totalmente aos seus estudos, seja por uma alta demanda familiar ou por responsabilidades financeiras a cumprir.

Nessas situações, a necessidade de estar no mesmo patamar que os outros leva muitos alunos ao abuso de remédios psicoestimulantes.

Efeitos positivos dos fármacos psicoestimulantes

Os remédios que melhoram o rendimento e a cognição impedem que os neurônios recaptem as substâncias que usam para se comunicar entre si: dopamina e noradrenalina. A dopamina se encarrega de funções como a motivação e a concentração, enquanto a noradrenalina aumenta o estado de alerta e a energia da cognição.

Os remédios psicoestimulantes mais conhecidos são o metilfenidato, a atomoxetina, o Aderall – esse último o nome comercial da substância, remédio amplamente vendido em países como os Estados Unidos – e o Concerta – nome comercial muito receitado na Europa.

Dessa forma, esses fármacos psicoestimulantes elevam o nível de dopamina e noradrenalina cerebral – especialmente no córtex pré-frontal. Então, o efeito é de se sentir mais motivado, alerta, concentrado e entretido muito mais facilmente. Esses efeitos são positivos, mas não são os únicos que esses remédios provocam no nosso corpo.

É necessário lembrar que todos esses remédios terão efeitos colaterais não desejados. Por isso, o abuso desse tipo de medicamento envolve sempre um risco importante para  saúde, tanto física quanto mental.

Os efeitos do abuso de remédios no cérebro

Problemas derivados do abuso de remédios psicoestimulantes

Existem muitos efeitos colaterais para quase todos esses remédios que mexem com o cérebro. Entre os mais frequentes, podemos encontrar a taquicardia, a insônia, a agitação, a ansiedade e até mesmo a anorexia. Além disso, existe também um certo risco de desenvolver uma dependência da substância.

Usá-los é apenas uma solução temporária para um problema constante do estudante. A pessoa pode achar que ela não é suficientemente boa, ou que não faz suas atividades suficientemente bem. Pode nunca aprender a manejar corretamente suas necessidades de estudo e seu tempo, já que com a medicação todas as circunstâncias em torno disso mudam.

Finalmente, é importante esclarecer que em alguns casos a medicação realmente é necessária. Isso acontece se estamos realmente falando de um caso real de transtorno de atenção. Agora, a medicação por si só nunca resolverá nenhum problema. É necessário conjugar ao uso do medicamento a implementação de estratégias psicoeducativas nas escolas e outros ambientes de ensino, e até mesmo no próprio lar.

Na maioria dos casos, os remédios deveriam ser uma ajuda, e não a única solução.


Este texto é fornecido apenas para fins informativos e não substitui a consulta com um profissional. Em caso de dúvida, consulte o seu especialista.