Altered Carbon: a relação entre a mente e o corpo alterada
Altered Carbon. Imagine que estamos no século XXV e que a humanidade se espalhou por toda a galáxia sob a supervisão da ONU. As divisões de classe, raça e religião ainda persistem, mas os avanços tecnológicos redefiniram a vida. Agora, a consciência é armazenada em discos digitais implantados na base do cérebro, que são facilmente transportados para um novo corpo, como se tivéssemos um leitor de cartão.
Esta definição pertence ao mundo criado Richard K. Morgan na ficção científica Altered Carbon, que foi transformada em uma série da Netflix. Neste mundo fictício, existem diferentes dilemas sobre o futuro da humanidade.
Entre eles, destacamos a relação entre a mente e o corpo. Em uma sociedade onde nossa mente pode ser transferida para um disco digital, como seria a morte? É a mesma coisa estar em um corpo ou em outro? Que consequências a imortalidade teria?
Estes são apenas alguns dos dilemas com os quais damos de cara ao ler o livro ou assistir à série Altered Carbon.
As pilhas corticais de Altered Carbon
Nesta distopia, a identidade humana ou consciência pode ser baixada em uma “pilha cortical”. Essa pilha é inserida na coluna vertebral, entre as cervicais. Nela encontram-se a memória e a identidade das pessoas, e é atualizada de forma automática com o nosso cérebro.
Por outro lado, temos as “fundações”, que são os corpos. Eles podem ser naturais ou sintéticos, ou seja, criados. A questão é que quando o corpo morre, a pilha cortical pode ser armazenada indefinidamente ou inserida em outro corpo. Quando são armazenadas, a identidade pode ser carregada em um meio virtual.
Neste cenário, a morte não é compreendida como nós a compreendemos. O fato de um corpo morrer não quer dizer que a identidade vai morrer, por isso, matar um corpo não equivaleria a uma morte, já que ele pode voltar à vida em outro corpo.
A “morte real” só acontece quando a pilha cortical é destruída. Você consegue imaginar as implicações para as pessoas que acreditam que a alma vai para o céu? E para aqueles que acreditam na “migração” das almas?
Relação entre a mente e o corpo
O filósofo René Descartes considerou um dualismo entre a alma -ego cogitans- e o corpo -ego extenso. Sua consideração está muito presente em Altered Carbon. Entretanto, esta distinção não existe na realidade.
O neurologista Antônio Damásio deixou isso claro em seu livro “O erro de Descartes”. A mente e o corpo são um. Não é possível aprender sem um corpo. Se conseguíssemos isolar uma mente, esta não poderia aprender nada, pois precisaria do corpo. Como diz Damásio, “o corpo proporciona um conteúdo que é parte e envoltório das atividades da mente normal”.
Portanto, aqueles que vivem neste mundo fictício precisariam de um corpo para ter consciência. No entanto, estar em um corpo ou em outro não é a mesma coisa. Mudar de corpo levaria a sensações muito estranhas.
Da mesma forma, o autoconceito e a identidade pessoal mudariam de forma dramática quanto mais diferente fosse o corpo anterior. Consequentemente, o aprendizado mudaria, as sensações que perceberíamos com os nossos sentidos já não seriam as mesmas e, portanto, nossas interpretações destes sinais também seriam diferentes.
Em resumo, uma mudança de corpo teria mais possibilidades de gerar um trauma.
Implicações da imortalidade
Aqueles que viveram muito tempo, centenas de anos, são denominados na série como “Mat”. Trata-se de uma abreviação de Matusalém, um personagem bíblico que supostamente viveu nada mais, nada menos que 969 anos.
Mesmo que viver tantos anos possa parecer positivo, um Mat do livro conta que “é necessário ser um tipo específico de pessoa para seguir em frente, para querer continuar, vida após vida, corpo após corpo. É preciso ser diferente desde o começo, não se importando com o que se tornaria ao longo dos séculos.”
Como ele diz, nem todos têm a capacidade de ser Mats. Viver tanto implica ver muitas coisas, tanto boas quanto ruins. Ver muitas pessoas queridas morrerem, incluindo filhos, netos ou, inclusive, bisnetos. Você poderia suportar isso?
Da mesma forma, as relações com os que viveram menos tempo não vão ser as mesmas. “Se você vive tanto tempo, as coisas começam a ficar desinteressantes”.
“Você acaba ficando farto de si mesmo. No fim, pensa que é Deus. Logo, as pessoas ‘menores’, de trinta ou quarenta anos, já não são nada. Você viu muitas civilizações nascerem e morrerem, e começa a sentir que isso não vai acontecer com você, e que nada mais realmente importa. Talvez, você comece a tratar as pessoas ‘menores’ como se fossem flores sob seus pés”.