Cetamina: muito além da anestesia
“Eu vi uma luz no fim do túnel.” É a conhecida frase que os meios de comunicação de massa, através da cultura popular, nos enviam como representação do que alguns consideram “experiências fora do corpo” ou de “quase morte”. No entanto, além das considerações sobrenaturais, existe uma droga anestésica bem conhecida que pode estar por trás de algumas dessas experiências: a cetamina.
Algumas das pessoas que relatam essas experiências de escape extracorpóreo e sua percepção – de um ponto de vista distante do próprio corpo físico – estavam sendo operadas sob os efeitos sedativos da cetamina.
Estamos falando de uma droga que possui propriedades psicotrópicas poderosas. Esses fenômenos populares de fuga e viagem em túnel na hora da morte encontraram, assim, a lógica científica.
A cetamina é capaz, como outras drogas recreativas, de gerar fenômenos de dissociação perceptual em que a composição das percepções, em qualquer modalidade sensorial – incluindo a percepção do tempo e de si mesmo como um todo diferenciado do externo – ocorre de forma desordenada ou ilógica.
Por isso, o fenômeno perceptivo final surge distorcido, misturado: ocorrem transferências sensoriais intermodais (como ouvir uma cor, saborear um som, etc.) e, em casos um pouco mais extremos, o sentido direcional do tempo muda ou se reverte, se expande ou se contrai, e a pessoa deixa de reconhecer seus próprios limites físicos e membros corporais.
Alucinações multissensoriais – visuais, auditivas, gustativas, táteis e olfativas – ocorrem frequentemente, assim como a experiência ‘in situ’ de verdadeiros episódios que alteram a percepção espaço-temporal do momento e lugar presentes do indivíduo – fenômeno informalmente conhecido como ‘viagem’.
Muito frequentemente, e de acordo com as histórias das pessoas afetadas, ocorrem verdadeiras trocas dialéticas e experienciais com pessoas mortas, personagens fictícios ou mesmo uma versão diferente de si mesmo. Também é comum que surja a crença subjetiva de ter morrido e que o indivíduo experimente excitação ansiosa e emoções exorbitantes – especialmente aquelas relacionadas ao medo.
Em doses controladas e terapêuticas, como em uma mesa de operação, esses efeitos psicoativos são reversíveis e transitórios. No entanto, quando ingerida em doses superiores, a cetamina pode induzir um estado dissociativo profundo (popularmente conhecido como “buraco K”).
Também pode induzir a uma percepção de coisas, pessoas e situações não reais extremas, difíceis de conciliar com a própria realidade e com um grande risco de causar sequelas ou promover surtos psicóticos em pessoas com predisposição biológica a isso.
Esse problema tornou o uso da cetamina um assunto altamente controverso, por isso seu uso legal em humanos tem sido restringido nos últimos anos – às vezes usado apenas como último recurso -, permanecendo como o anestésico de escolha em grandes cirurgias veterinárias.
O que é a cetamina?
A cetamina é um tipo de medicamento utilizado essencialmente para a indução e manutenção da anestesia em cirurgia humana, tanto adulta quanto pediátrica. Ele tem a capacidade de induzir um estado de transe, ao mesmo tempo em que fornece:
- Alívio da dor.
- Sedação.
- Perda de memória.
Além desse uso cirúrgico, que também ocorre na ciência veterinária, a cetamina é usada no tratamento da dor crônica e para sedação rápida em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Enquanto a droga exerce seus efeitos, é observada uma preservação relativa das funções cardíaca, respiratória e reflexa. Normalmente, somente quando os efeitos começam a enfraquecer aparecem reações colaterais indesejáveis, tais como:
- Elevação da pressão arterial.
- Depressão respiratória.
- Contrações musculares involuntárias.
- Agitação.
- Confusão.
- Alucinações.
Estes são os efeitos atribuíveis a esta droga quando é utilizada ilegalmente e para fins recreativos em doses superiores, ou administrada de forma diferente da estritamente clínica.
Usos alternativos da cetamina
Apesar da sua má reputação, dos entraves políticos e jurídicos que cercam essa substância – agora amplamente considerada uma droga aditiva -, da relutância da própria comunidade clínica, farmacêutica e de pacientes, inúmeras pesquisas sobre usos alternativos têm sido realizadas.
“Declare o passado, diagnostique o presente, preveja o futuro.”
-Hippocrates-
Seu mecanismo de ação é o bloqueio seletivo do conhecido receptor NMDA (N-metil-d-aspartato), que, além de reduzir globalmente a atividade cerebral, também dificulta a retenção da memória e alivia temporariamente os sintomas depressivos.
Essa ação, junto com sua farmacocinética e farmacodinâmica, torna a cetamina um poderoso anestésico e sedativo – muito prático para aplicações médicas – , mas também o torna um forte medicamento dissociativo, justamente pela sua ligação com o receptor NMDA.
Além dos usos mencionados – considerados ‘típicos’ na prática clínica – existem outros usos menos explorados para os quais a cetamina parece ser uma alternativa eficaz:
- Como coadjuvante no tratamento da depressão.
- Como hipnótico ou indutor do sono.
- Para reduzir a incidência de crises epilépticas.
- Como neuroprotetor, principalmente em casos de lesão cerebral.
- Para ajudar a mitigar os efeitos do transtorno de estresse pós-traumático e também no tratamento do transtorno obsessivo-compulsivo.
- Como redutor dos sintomas asmáticos.
Combate à depressão
Dentre todos os novos e surpreendentes usos atribuíveis à cetamina, o que parece despertar mais interesse, e que segundo todas as indicações terá aplicação clínica e comercialização mais cedo, é o seu uso como complemento ao tratamento antidepressivo.
Nesse sentido, e longe da hipótese monoaminérgica amplamente aceita que por tantas décadas alimentou a pesquisa e a geração de famílias de medicamentos antidepressivos, a verdadeira novidade é que, justamente, os mais beneficiados são aqueles que responderam pior ao antidepressivo comum.
Ou seja, a cetamina funciona onde outros antidepressivos não funcionam. Ela está funcionando bem em pessoas cuja depressão é resistente aos medicamentos comuns, um resultado que poucos cientistas pensaram que encontrariam.
Às vezes, as soluções estão muito mais próximas do que pensamos; nossa ânsia por grandes feitos nos faz olhar para novos horizontes quando, possivelmente, temos uma resposta bem diante de nós.
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