Communitas: quando a mudança vem do irracional

Communitas: quando a mudança vem do irracional
Roberto Muelas Lobato

Escrito e verificado por o psicólogo Roberto Muelas Lobato.

Última atualização: 22 dezembro, 2022

Todas as pessoas que já participaram de uma peregrinação sabem que é algo especial, mas talvez não saibam o que é a communitas. Caminhar junto com desconhecidos e compartilhar uma meta com eles nos leva a criar vínculos especiais. Um destino, um caminho compartilhado e uma afinidade inesperada constroem a magia.

Esse fenômeno foi estudado pelo antropólogo Victor Turner, que considerava que as peregrinações eram rituais que se dividiam em diferentes fases. Para ele, as peregrinações consistem em sair da sociedade e voltar, mas na volta nada mais é como antes. Para Turner, o mais importante era a comunidade que se formava, as relações tão especiais que chamou de communitas.

Fases dos rituais

Os rituais constam de três fases diferentes, conectadas entre si. Essas fases são a separação, a liminaridade e a agregação. Na primeira fase, a da separação, as pessoas se separam da comunidade social. Elas abandonam a vida cotidiana, tanto física quanto simbolicamente.

Nas peregrinações, essa fase ocorre quando preparamos as malas, nos despedimos e buscamos informações sobre a experiência que começa, etc.

Sapatos gastos

A segunda fase, a da liminaridade, é a da realização do caminho, a peregrinação. Nessa fase, as pessoas se afastam das noções normais do tempo e do espaço. O tempo passa de uma forma diferente. As pessoas param de olhar o relógio constantemente, caminham mais lentamente desfrutando a paisagem, e o momento se torna mais importante do que o futuro.

Durante essa fase, também se compartilha um motivo em comum com os outros peregrinos, acabar a peregrinação ou chegar ao seguinte ponto da viagem. Isso faz com que se crie uma identidade comum.

A última fase corresponde à agregação. É o fim da peregrinação. É hora de voltar para casa, para a rotina de sempre. O caminho acabou. No entanto, nada mais é igual. Os peregrinos costumam voltar mais tranquilos e adquirem um novo status social. As atividades rotineiras e entediantes são encaradas de outra forma. As pequenas coisas adquirem mais importância e as relações com outras pessoas se tornam mais prazerosas. O que aconteceu?

A communitas

Das três fases dos rituais, a segunda, a liminaridade, é a central, a mais importante. Durante essa fase, alguma coisa que acontece nos leva a mudar. Algo muda nossa forma de ver e entender o mundo, isso é a communitas.

Durante a fase de liminaridade, as condições sociais prévias não existem. As normas e as limitações que temos no dia a dia desaparecem, e gozamos de uma liberdade ampliada. Nosso status social deixa de importar. Não importa nosso trabalho, nossos estudos, nem nossa crença religiosa. Todos os peregrinos estão no mesmo nível, são iguais.

“Caminhar é uma forma de gozar da modernidade, um atalho no ritmo desenfreado da nossa vida e um modo de aguçar os sentidos”.
-David Le Breton-

Esse estado anárquico proporciona o surgimento da communitas. A communitas, segundo Turner, é um espírito comunitário. É um sentimento de igualdade social, de solidariedade e de união. Enfim, é um vínculo humano que se compõe por laços igualitários não racionais. Os demais peregrinos se tornam nossos iguais sem nenhuma razão.

Mesmo que em outras situações nunca chegassem a ser nossos amigos, se transformam em mais do que amigos. Não importa o que compartilhamos, não fora desse momento precioso do agora.

A communitas é muito intensa. Ela nos leva a deixar nossos sentidos mais sensíveis e nossa intuição mais ativa. As emoções ficam à flor da pele e o racional perde sentido. No entanto, esse estado é temporário e não costuma durar muito.

Além disso, a communitas pode servir para destruir a ordem. Esse estado em que as normas sociais habituais não funcionam pode nos levar a um estado caótico no qual reina a destruição. No sentido contrário, a communitas também pode nos levar à criação. Esse estado pode funcionar como uma ajuda para gerar novas normas e valores, além de nos ajudar a resgatar valores perdidos.

Amigas fazendo caminhada na natureza

Tipos de communitas

Turner distinguiu entre três tipos diferentes de communitas: a communitas existencial ou espontânea, a communitas normativa e a communitas ideológica.

A communitas espontânea aparece quando ocorre um acontecimento contra-cultural. Quando se participa de um acontecimento cujas normas vão de encontro à cultura atual. A communitas normativa ocorre quando existe uma necessidade de controle social. Esse tipo de communitas tem origem na communitas espontânea, e as peregrinações pertencem a esse tipo. Por fim, a communitas ideológica é a que se encontra nas sociedades utópicas. As pessoas compartilham determinados ideais, uma utopia.

Enquanto a communitas espontânea ocorre fora das normas sociais, da estrutura social, a normativa e a ideológica estão dentro da estrutura social. Por isso, a espontânea é a mais livre, a que mais mudanças proporciona.

Em resumo, sair voluntariamente do local de residência, cruzar novas fronteiras e passar por estados nunca antes experimentados nos leva à communitas, algo que supera a divisão entre pessoas e conduz a uma unificação social. Se você viveu uma experiência desse tipo, já sabe como chamá-la. Se, pelo contrário, ainda não experimentou, o que está esperando?


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