Delírio de culpa: em que consiste?
O delírio é um transtorno do conteúdo do pensamento altamente resistente a evidências. Assim, em muitos casos, o delírio obtém a certeza íntima de ser uma verdade absoluta e a pessoa o trata como tal. Essa convicção dificilmente admite críticas, podendo até mesmo mudar a personalidade de quem a defende.
As crenças delirantes geralmente tendem a ser falsas e a não encontrar respaldo na vivência, mas sim em uma interpretação muito particular dela. O delírio nunca é explicado pela formação cultural, intelectual ou religiosa do delirante. Cabe ressaltar que todo delírio é real para quem o vivencia e pode ser muito estranho para os pares da mesma cultura.
O apego ao delírio se baseia em pontos distintos. Em primeiro lugar, considera-se que esta é a realidade. Isso não deveria ser uma surpresa, uma vez que a realidade com a qual todos trabalhamos não deixa de ser uma interpretação muito particular do que realmente acontece e que fazemos a partir das nossas crenças, experiências, expectativas, etc. Assim, cada um pode construir o seu próprio mundo e viver de acordo com o seu próprio entendimento.
Em segundo lugar, o delírio reestrutura a personalidade. Essa mudança na organização e estrutura do funcionamento psíquico faz com que a pessoa busque dar continuidade ao seu novo modo de ser. Dessa forma, ela se apega ao que pensa que é, assim como todos nos apegamos à nossa identidade.
Neste artigo, vamos nos aprofundar em um delírio em particular: o delírio de culpa.
O que é o delírio de culpa?
Em essência, o delírio de culpa é semelhante a qualquer outro delírio; a diferença seria o tema. Neste caso, o tema é a culpa. O delírio de culpa é uma crença falsa e arraigada de que uma pessoa é culpada por alguma coisa e de que o seu atual estado negativo é de sua responsabilidade (culpa).
Esses sentimentos de culpa são mediados por um forte componente de autoconsciência, reflexão e autoavaliações negativas. Além disso, a culpa também pode ser acompanhada de ansiedade, gerada pela crença delirante de ter cometido uma transgressão ou causado um fracasso. A culpa do delirante inclui, portanto, um senso de responsabilidade pessoal e uma certa forma de angústia.
Em algum momento de nossas vidas, todos nós já nos sentimos culpados por algum motivo. A ideia de que éramos responsáveis pelo dano causado a uma outra pessoa ou por termos transgredido uma norma social nos causou desconforto. Inclusive, podemos até mesmo ter ficado repetindo a mesma ideia dentro de nossas cabeças, várias e várias vezes: “a culpa é sua”. Isso é algo muito comum. Porém, como podemos diferenciar a ideia normal de culpa do delírio de culpa?
A ideia normal de culpa e o delírio de culpa
Para demarcar o limite, que às vezes é muito difuso e complexo de estabelecer, podemos levar em conta vários aspectos ou dimensões:
- Convicção: o grau em que se está convencido da realidade das crenças delirantes.
- Extensão: o grau em que a crença envolve diferentes áreas da vida.
- Distanciamento: o grau em que a crença se afasta da realidade culturalmente aceita.
- Desorganização: o grau em que as crenças são internamente consistentes, lógicas e sistematizadas.
- Pressão: o grau em que se está preocupado com as crenças expressas.
Em resumo, para diferenciar uma ideia de culpa de um delírio de culpa, é recomendável observar o quanto a ideia está enraizada, bem como se ela ocupa diferentes áreas da vida.
É preciso observar o quanto a evidência é intensa, persistente e resistente. Vejamos alguns sintomas do delírio de culpa que também podem servir para distinguir o delírio de outros conteúdos do pensamento.
Sintomas do delírio de culpa
Em geral, podemos identificar vários sintomas: emocionais, cognitivos e comportamentais.
Sintomas emocionais
Estes podem aparecer das seguintes maneiras:
- Ansiedade, medo ou paranoia.
- Depressão.
- Irritabilidade ou raiva.
- Apatia.
- Mudanças de humor rápidas e imprevisíveis.
- Mudanças na personalidade.
Sintomas cognitivos
Apresentam-se como:
- Memória deficiente.
- Desorientação.
- Alucinações.
- Dificuldade para falar ou lembrar palavras.
- Discurso sem sentido ou divagação.
- Problemas para entender a fala.
- Dificuldade para ler ou escrever.
Sintomas comportamentais
Podem incluir o seguinte:
- Inquietação, agitação ou comportamento combativo.
- Gritar, gemer ou emitir outros sons.
- Ficar quieto e retraído.
- Movimentos lentos ou letárgicos.
- Alteração dos hábitos de sono.
- Inversão do ciclo sono-vigília.
Causas do delírio de culpa
As causas do delírio são multifatoriais. Ou seja, ele surge como resultado da integração de diversos processos e dimensões humanas como, por exemplo, a biológica, a psicológica e a social. A seguir, vamos explicar as causas do delírio de culpa a partir do modelo neuropsiquiátrico de Van Der Gaag.
Para explicar o delírio, esse pesquisador integrou várias perspectivas teóricas, o que o levou a propor que o aparecimento do delírio depende de vários componentes:
- Biológico: há uma desregulação dopaminérgica nas vias mesolímbicas. Isso altera as percepções, enfraquece a influência das memórias e também provoca o processo de percepções anormais e alucinações.
- Cognitivo: as percepções são interpretadas de acordo com a história da pessoa e integradas aos seus esquemas. Os vieses cognitivos típicos desse componente afetam o raciocínio da pessoa.
- Um componente integrador psicológico: à medida que as percepções se integram aos esquemas e à visão geral do mundo, elas são reforçadas por uma lógica defeituosa. Assim, a pessoa delirante geralmente tende a tirar conclusões precipitadas, sem desenvolver e testar explicações alternativas.
- Um componente de manutenção psicológica: conforme os delírios se integram às percepções gerais, os delírios se mantêm, por meio da atenção seletiva e do viés de confirmação.
Intervenção
Para o tratamento do delírio de culpa, é possível implementar vários planos de intervenção. Os que produziram os melhores resultados são os seguintes.
Terapia cognitivo-comportamental
Procura apoiar a pessoa para ajudá-la a identificar os seus processos de pensamento disfuncionais (ideias delirantes) e encontrar maneiras de modificá-los. Também procura criar uma relação descontraída, segura e aberta, onde o paciente seja tratado como um colaborador ativo.
O objetivo geral é reduzir a perturbação emocional dos sintomas, aliviar o sofrimento, diminuir a gravidade dos sintomas do delírio e também afastar o paciente da realidade psicótica em que está vivendo.
Psicofarmacologia
Os dois principais sintomas do delírio que podem exigir um tratamento farmacológico são a psicose e a insônia. Os neurolépticos demonstraram ser os fármacos de escolha para o tratamento desses sintomas.
O haloperidol em baixas doses apresenta a mesma eficácia em comparação com os antipsicóticos atípicos olanzapina e risperidona para o tratamento do delírio. Os últimos seriam igualmente eficazes na redução dos sintomas clínicos do delírio (Kim et al., 2010).
Para concluir, o delírio de culpa é um transtorno complicado para o delirante por causa da carga emocional do sentimento de culpa. Ao contrário de outros delírios, neste caso, a pessoa mantém uma contínua insatisfação consigo mesma. Assim, a contínua reprovação por parte do seu pensamento delirante torna a sua vida, até certo ponto, insuportável.
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