Deus da Carnificina, uma caricatura do cotidiano
Sem sair da sala e com apenas quatro atores, testemunhamos uma magnífica ridicularização do cotidiano. Deus da Carnificina é um filme de Roman Polanski que, por sua vez, é uma adaptação da peça Le Dieu du Carnage, de Yasmina Reza.
Não há dúvida de que o elenco do filme é excepcional: Kate Winslet, Jodie Foster, Christoph Waltz e John C. Reilly são os quatro atores, os únicos do filme. Trata-se de um filme em curta-metragem, estático em termos de espaços, limitado em personagens, mas com um script muito poderoso. Todo o peso do filme reside na interpretação dos atores e no roteiro do mesmo.
“A origem da lei, como você sabe, é força bruta.”
-Alan Cowan, Deus da Carnificina-
Deus da Carnificina, um conflito de crianças?
Tudo começa depois da disputa de duas crianças em um parque, o único cenário externo que visualizamos. A briga termina quando um atinge o outro com uma vara. A seguir, vamos para a casa d0s Longstreet, a família da criança que foi golpeada e, como resultado, teve problemas na boca. Os pais de ambos os filhos se reúnem no apartamento mencionado para tentar encontrar uma solução para o problema.
- Os Cowan: pais do menino “agressor”, formam um casal elegante e distinto. O pai, Alan, é um advogado reconhecido, mas sem escrúpulos; a mãe, Nancy, é uma investidora financeira de moral duvidosa. Ambos desenham o protótipo de “boa família” rica que goza de reconhecimento social e que pretende ser exemplar. No entanto, logo percebemos a falsidade e a hipocrisia dessas aparências.
- Os Longstreet: pais do agredido, formam um casal que pretende ser exemplar, pacífico e capaz de resolver conflitos de forma educada. Michael, o pai, parece um homem calmo, fácil, bem intencionado e que tentará aliviar as tensões; por outro lado, Penélope, a mãe, é uma pacifista convicta e escritora, embora desde o início vejamos uma certa hostilidade em relação a seus “convidados”.
Ao longo do filme, os personagens se desmascaram e passam do politicamente correto para a agressividade. Mesmo Michael, que parecia o pacificador, mostrará um lado sombrio e rancoroso. A conversa se tornará uma autêntica carnificina verbal, onde as facas voarão em todas as direções possíveis. O que no início seria a resolução de um conflito e um exemplo para seus filhos se torna uma autêntica selva, onde cada um vê sua verdadeira natureza.
Os argumentos e a coerência vão desaparecendo, a agressividade vai subindo o tom, os personagens perderão completamente os papéis e entrarão no pior de suas versões. A situação, aparentemente séria, se transformará em um argumento absurdo que se aproxima da infantilidade.
Deus da Carnificina e o egocentrismo
Em Deus da Carnificina, os impulsos mais primitivos do ser humano são explorados, seu lado mais visceral e mais escuro vem à luz, tudo isso em um espaço quase claustrofóbico, porque toda tentativa dos Cowan de sair do apartamento será frustrada ao entrar em uma nova discussão.
As discussões, às vezes, geram um ciclo, nos submergem em um beco sem saída de onde é difícil escapar e, quando parece que tudo vai ser resolvido, outro argumento irá nos atrapalhar e nos forçará a entrar no conflito. É assim que eles parecem resolver os conflitos no filme, presos entre as quatro paredes de uma sala que não os levará a lugar algum. Quando eles se aproximam do elevador, quando parece que tudo acabou, entram em uma nova discussão e ficam presos novamente na sala de estar.
Os conflitos ficam tão espalhados que, o que a princípio era uma guerra entre duas famílias, acabou se tornando uma luta de mulheres contra homens para, finalmente, desembocar em uma guerra completamente individualista. Cada um deles defende a si mesmo; a obstinação humana será extrema, todos querem ter razão e todos pensam que, se o mundo fosse igual a eles, seria muito melhor.
Deus da Carnificina apresenta uma caricatura da natureza humana. Vemos personagens que usam inúmeros mecanismos de defesa, muito primários e muito básicos, que perdem os papéis e não têm problemas na hora de apunhalar o próximo.
Cada um deles construiu uma imagem de si mesmo que quer projetar, e quando esta enfraquece, eles caem na agressividade, pois não podem permitir que seu ego se sinta atacado.
A crítica à sociedade
Ao deixar as convenções sociais, ao mostrar seu verdadeiro caráter, vemos a realidade por trás da máscara, vemos a hipocrisia e a falta de moralidade do nosso mundo. Polanski fornece um ar pessimista para a nossa vida diária, porque os personagens não são estranhos para nós e é fácil nos identificarmos com alguns deles ou identificarmos pessoas do nosso ambiente.
O dinheiro e a importância do status serão criticados no filme, especialmente através do personagem de Alan Cowan, que está mais preocupado com seu trabalho do que com suas próprias relações pessoais; ele mal mostra interesse na educação de seu filho e o vemos como um personagem imoral quando descobrimos que seu trabalho consiste em defender uma empresa farmacêutica cujos medicamentos causam sérios problemas de saúde. Além disso, ele vive preso ao seu telefone celular para abordar problemas de trabalho, algo que lhe permite escapar da discussão continuamente e que será um gatilho a mais para o conflito ao impedir a comunicação entre ambas as famílias.
Penélope será a personagem que mais contrasta com Alan, porque ela parece muito focada em causas humanitárias e muito consciente dos problemas do terceiro mundo; no entanto, ela não saiu da caverna e acredita em tudo que vê.
É questionada a superproteção que ocorre em muitos casos para com os filhos, impedindo-os de resolver conflitos por conta própria, culpando excessivamente alguns e vitimando outros… quando, na realidade, há muitas nuances. Também se questiona a importância do material em nossa sociedade, como a cena do vômito sobre os livros de arte ou da destruição do celular.
Esta situação caótica e sem sentido, finalmente, não vai a lugar nenhum. O melhor de tudo é que, no final, serão as crianças que darão uma lição aos pais através de uma cena breve. No parque onde tudo começou, elas parecem ter deixado as suas diferenças. Isso nos faz refletir e repensar que talvez estejamos complicando demais a vida e que tudo pode ser reduzido a uma simples discussão entre as crianças que acabam apertando as mãos.
Crítica, comédia e realismo vão de mãos dadas neste filme que nos apresenta uma situação muito cotidiana, que vai além dos falsos sorrisos e mostra o ser humano como um animal enjaulado que, ao quebrar as barras, não é mais do que um ser violento e egoísta. Deus da Carnificina é uma obra de arte que desenha nossa sociedade atual, um filme em que a estupidez humana é uma das chaves.
“Eu acredito no deus da carnificina. Um deus cujas regras não foram questionadas desde tempos imemoráveis”
– Alan Cowan, Deus da Carnificina –