A diferença entre ter coerência e pregar pelo exemplo
A coerência pode ser concebida como um traço de personalidade, uma posição em relação a uma questão particular ou uma propriedade de raciocínio. Além disso, já foi provado que alinhar os nossos pensamentos e experiências vitais é uma reserva positiva em nossa saúde psicológica.
Hoje em dia, ouvimos as declarações frequentes de figuras públicas a respeito de como pregar através do exemplo. As redes sociais promoveram de forma vertiginosa a materialização ou externalização de valores que são, essencialmente, invisíveis.
No entanto, a materialização de um comportamento moralmente aceito pode ser camuflada sob um repertório de valores ou outros comportamentos antiéticos.
Por exemplo, doar dinheiro para as classes que mais precisam pode ser uma boa ação. No entanto, essa doação pode ser questionada por alguns se o dinheiro tiver sido ganho de forma não ética (por exemplo, pelo tráfico de drogas).
A importância de contextualizar
Neste ponto, devemos reformular: o que é o exemplo? É algo que depende de uma materialização concreta, de uma avaliação externa ou de uma ação pré-estabelecida? Por ter mais recursos para pregar pelo exemplo, é mais coerente quem ensina através dele? A resposta é não.
Pregar através do exemplo significa “fazer o que quer que os outros façam”. As palavras têm o poder do convencimento, mas o exemplo tem o poder da verdade vista e vivida. As palavras são realmente poderosas quando baseadas em exemplos pessoais.
Por sua parte, a palavra coerência tem a sua origem etimológica no latim, coaherentia, que significa conexão interna e designa a qualidade do que apresenta uma conexão ou relação interna e global de suas diferentes partes.
Esta definição destaca a nuance interna como indispensável em sua conceituação. No entanto, “pregar pelo exemplo” parece dar uma maior importância ao componente externo, que é o comportamento, como se fosse uma condição necessária ou suficiente.
Assim, um comportamento ou um repertório de comportamentos “exemplares” não determina a coerência, já que o componente cognitivo – como aquele referente a uma suposição de valores éticos – é uma condição essencial.
A coerência pode ser avaliada através da relação entre as nossas próprias experiências ou histórias com nossos pensamentos e decisões. Devido à sua natureza total ou global, está relacionada com a frase de Aristóteles, posteriormente coletada pela psicologia da Gestalt: “O todo é mais do que a soma das partes”.
A verdade como coerência
Essa diferença de nuances no conceito de coerência costuma ser esquecida na linguagem cotidiana, usando ambos os significados de forma indistinta.
Isso também aconteceu nos estudos de filosofia de ‘A teoria da coerência’. De acordo com Rescher, essa teoria não foi, historicamente, uma doutrina monolítica, mas teve formas significativamente diferentes.
A teoria da verdade como coerência foi estudada no famoso ‘Círculo de Viena’, provando ser uma abordagem convencionalista. Esta teoria recebeu muitas críticas pelo seu pensamento circular, questionando o que realmente significa ser coerente.
As críticas a essa teoria foram esclarecidas pelo filósofo alemão Schlick, quando Otto Neurath e Carnap tomaram posse de uma teoria neopositivista da verdade. Além disso, advertiam que se tratava de uma abordagem circular e insistiam na presença da ética na verdade.
A coerência a partir da psicologia do pensamento
A psicologia do pensamento estuda formas válidas de raciocínio, bem como as falácias de pensamento mais frequentes. Aquilo que fazemos quando pensamos indutivamente é acreditar que a verdade das premissas garante a verdade da conclusão.
Por outro lado, também ocorre uma falácia quando chegamos a uma conclusão sem conhecer as premissas, ou mesmo as conhecendo.
Esses vieses no pensamento podem ser observados em fenômenos sociais recentes, como a pós-verdade ou populismo, entre outros. Este último pode ser um exemplo de raciocínio silogístico categórico.
Nesse tipo de raciocínio, a conclusão é tirada a partir de uma inadequação da premissa maior com a menor, dando origem a um pensamento falacioso.
A pós-verdade pode ser contemplada como um tipo de falácia formal e incondicional, chamada de afirmação do consequente. Essa falácia ocorre porque se afirma um segundo elemento e deduz-se erroneamente que o seu antecedente é verdadeiro.
Ao fazer qualquer julgamento, avaliação ou medida, vale lembrar a contribuição de Einstein quando se referiu à existência de variáveis ocultas.
Para ele, na realidade, os resultados das medidas devem ser previsíveis, e se não podemos prevê-los, é porque existem informações que não conhecemos. Ele chamou essa informação de “variáveis ocultas” da realidade.
Coerência e saúde
Em 1987, Antonovsky propôs o conceito de senso de coerência (SOC) como uma variável salutogênica, mediando a saúde em situações estressantes.
Esse conceito tem sido estudado como uma medida da capacidade de resiliência e está relacionado à autoestima e a uma melhor resistência ao estresse.
O valor positivo da coerência foi estudado em um tipo de terapia construtivista, que é chamado de terapia da coerência. Esta terapia integra de forma interessante o que tem sido eficaz na prática clínica da psicologia, confirmada pela neurociência.
A terapia da coerência obtém resultados efetivos, conseguindo intervir na experiência emocional bloqueada e integrá-la à memória para tornar-se um significado consciente. Em outras palavras, devolve ao indivíduo ou restaura a sua coerência pessoal e global.
Esse caráter global, que forma a verdade da experiência do indivíduo, é a principal característica da coerência. A verdade serve como guia ou luz para seguirmos um caminho; as vezes obscuro, outras vezes claro.
Cada pessoa vive experiências diferentes e, ainda assim, conhece a realidade até certo ponto. Por isso, em vez de tentar seguir um exemplo específico, é necessário conhecer a nossa pedra fundamental, que é a coerência.
Conclusão
O valor da coerência, por ser um valor invisível, parece ter passado despercebido nos últimos tempos, ou é menos valorizado do que um comportamento exemplar, que produz mais visibilidade. Assim, mesmo em silêncio, talvez você seja mais coerente do que quem prega com o exemplo.
Saber que existem mais realidades do que podemos deduzir através de uma simples conexão externa permite que nos aproximemos da verdade, desenvolvendo uma maior abertura mental e compreendendo o senso ético de coerência.
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