O efeito Dom Quixote

O efeito Dom Quixote
Roberto Muelas Lobato

Escrito e verificado por o psicólogo Roberto Muelas Lobato.

Última atualização: 27 janeiro, 2023

Dom Quixote, o personagem criado por Miguel de Cervantes, foi um lutador trágico. Sua luta se concentrava na realidade rude e hostil, a qual pretendia mudar para um ideal que sabia ser irrealizável. As metáforas que este personagem levanta são várias, o que fez com que suas aventuras dessem nome a um efeito, o efeito Dom Quixote.

O efeito Dom Quixote tem sido identificado em diferentes campos. Esta analogia do homem que luta contra moinhos de vento acreditando que eles são gigantes pode ser encontrada nas guerras entre os países, mas também no nosso dia a dia. Quando pensamos que as coisas são de uma maneira, mas na realidade são de outra, caímos neste efeito e acabamos dando de cara com o moinho.

“Dom Quixote eu sou, e minha profissão é a de cavaleiro errante. As minhas leis são desfazer os erros, prover o bem e evitar o mal. Eu fugi da vida fácil, da ambição e da hipocrisia, e busco para minha própria glória o caminho mais estreito e difícil. Isso é ser tolo e ingênuo?”.
– Miguel de Cervantes Saavedra – 

O efeito Dom Quixote nas guerras

Um dos significados conferidos ao efeito Dom Quixote incide sobre as relações entre os países. Mais especificamente, nas guerras entre países diferentes. Na história podemos encontrar vários exemplos, como a guerra dos Estados Unidos contra o Vietnã. Nestas guerras, os países estão engajados em batalhas que não podem vencer. Embora o domínio do território seja impossível, estes países se lançam à guerra.

Infelizmente, o número de mortes causadas por essas guerras não é justificável apesar dos benefícios que podem trazer. Embora estas guerras comecem com a desculpa de salvar outro país, de trazer a democracia ou de derrubar uma ditadura, estas ideias são apenas ideais impossíveis, como aqueles defendidos por Dom Quixote. Não há nada mais a lembrar sobre a invasão, também realizada pelos Estados Unidos, no Iraque, a fim de implantar a democracia no Oriente Médio.

Moinho de vento

O efeito Dom Quixote como histerese

De acordo com a sociologia, o efeito Dom Quixote aplicado às guerras corresponde à “histerese”. A histerese ocorre quando a causa e o efeito estão separados temporalmente. Ou seja, temos a causa que deveria provocar a mudança, mas a mudança leva mais tempo que o esperado para acontecer ou nunca acontece. Aplicada à sociologia, a história nos ensina lições sobre como os eventos aconteceram, nos dá a experiência. No entanto, por mais que seja esperado, o passado não será sempre repetido. Por exemplo, quando nos mudamos o esperado é que, após um curto período, estejamos adaptados aos costumes do nosso novo local. Isso nem sempre acontece.

Ser influenciado pela literatura e pela história, em detrimento de outras ciências, pode nos levar a estabelecer ideias errôneas sobre o que vai acontecer. Os preconceitos cognitivos e os atalhos mentais (heurísticas) que nossos cérebros usam podem nos fazer confiar mais nas esperanças que temos do que na racionalidade. Este efeito Dom Quixote é encontrado quando nos imaginamos perdidos em uma névoa em que nos esforçamos para encontrar velhos fantasmas, gigantes de alguma forma desejados, que por não terminarem de se formar, acabam se diluindo.

“O cientista procura o comum no diferente, separa o essencial do supérfluo: e é o que Sancho Pança faz continuamente, busca respostas sensatas para os absurdos de Dom Quixote.”
– Jorge Wagensberg –

O efeito Dom Quixote no habitus

Para Pierre Bourdieu, o efeito Dom Quixote está inserido em sua teoria do habitus. O habitus é o esquema por meio do qual agimos, pensamos e sentimos de uma certa maneira. O habitus é determinado pela nossa classe social, que por sua vez é constituída pela interação entre conhecimento cultural, educação e capital econômico, entre outros fatores.

Os padrões do habitus levam pessoas que vivem em um ambiente semelhante a terem estilos de vida muito similares. Por exemplo, as pessoas de um mesmo bairro tendem a ter gostos semelhantes em termos de livros, filmes, esportes, arte, etc. Do mesmo modo, o comportamento dessas pessoas também será semelhante. Porém, o habitus pode ser alterado quando as pessoas agem de forma diferente da sua conduta habitual.

Sancho Pança

Apesar de nos impor limites, indicando o que é possível e impossível, como dito anteriormente, o habitus pode nos levar à superação. Uma vez que o que o habitus nos diz ser impossível nem sempre é, as fortes mudanças que encontramos no meio podem forçar a mudança do habitus. Se, tendo em conta estas alterações, a mudança do habitus for favorável, diz-se que um bom ajuste foi realizado.

Quando isto não acontece ocorre a “histerese do habitus”, também conhecida como efeito Dom Quixote. Quando isso ocorre, os pensamentos, os sentimentos e as ações são inadequados considerando as condições sobre as quais são apresentados. Isso ocorre porque o habitus permanece ancorado ao passado, não se altera ainda que ocorram mudanças em seu entorno. Por sorte contamos com amigos fiéis, como Sancho Pança, que mesmo sendo muito diferentes de nós, nos acompanharão em nossas aventuras dando-nos uma perspectiva que, embora diferente, possivelmente é mais ajustada à realidade.


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