1917: um plano-sequência angustiante
1917 era um dos grandes favoritos a ficar com o prêmio mais cobiçado do Oscar de 2020. No entanto, teve que se contentar com as estatuetas que premiavam aspectos mais técnicos. Parasita foi, sem dúvida, a verdadeira revelação, um filme que fez história e ganhou os prêmios mais valorizados.
O talento não entende de idiomas e nem de fronteiras, algo que ficou muito claro com a premiação histórica de melhor filme para uma obra sul-coreana. No entanto, neste artigo vamos falar de outro longa, que triunfou nos prêmios BAFTA e no Globo de Ouro, embora não tinha sido tão bem-sucedido no Oscar.
Um passado um pouco esquecido
Existe uma grande infinidade de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e inclusive sobre o Vietnã, mas não há muitos títulos que fizeram sucesso internacional inspirados na Primeira Guerra Mundial. Talvez um dos mais reconhecidos seja Glória Feita de Sangue, do inesquecível Stanley Kubrick, protagonizado pelo recentemente falecido Kirk Douglas.
A Primeira Guerra Mundial gera mais dúvidas do que a Segunda e não é tão cinematográfica quanto a sua sucessora. Talvez o inimigo não seja tão claro e o caos que a caracterizou tenha dificultado, de certa forma, a sua passagem ao cinema. Qualquer espectador que pense no cinema bélico não vai demorar a citar títulos nos quais o inimigo principal é o nazismo.
Sam Mendes, inspirado em algumas histórias que havia ouvido de seu avô, ousou com um longa com um enredo simples e um jogo de cenas sublime para mergulhar nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.
Apertar a tecla certa
Uma piada pode ser contada de diferentes maneiras, e certamente, dependendo de quem a contar e de como a contar, vai despertar mais ou menos risadas. Esta afirmação, por mais simples que pareça, pode ser aplicada ao cinema e, em definitiva, à arte. A mensagem é fundamental, não há dúvida disso; se a história de fundo não nos prender, não há muito a fazer. No entanto, como em toda piada, a forma de narrar tem uma importância crucial.
O enredo de 1917 não poderia ser mais simples: dois soldados rasos do exército britânico precisam enviar uma mensagem a outra de suas tropas para evitar um massacre pelas mãos do inimigo. É aí que algo tão simples quanto uma mensagem ganha vida e desperta a empatia do público. Um público que mantém um silêncio sepulcral porque sente o coração encolhido e os nervos à flor da pele diante de um perigo tão iminente quanto a morte.
O filme conta com um elenco que inclui alguns dos grandes nomes do cinema britânico das últimas décadas, como Colin Firth e Benedict Cumberbatch. No entanto, decide deixar todo o peso interpretativo nas mãos de dois jovens bastante desconhecidos.
Embora seja verdade que outro tipo de narração teria permitido trabalhar mais os personagens secundários e os atores já mencionados, a decisão de se apoiar em um número reduzido de protagonistas faz com que o público mergulhe de cabeça na ação.
As trincheiras nunca haviam sido tão poéticas e tão asfixiantes ao mesmo tempo. O espectador pode perceber o terror, a solidão e a desolação. Tudo isso graças a uma técnica impecável que mantém suas raízes no suspense. Como isso pode ser possível? Graças ao uso de um plano-sequência eterno, embora ilusório.
1917 e um falso plano-sequência
Não é que 1917 tenha inventado algo completamente inovador, pois o próprio Hitchcock fez experimentos com os limites do corte em Festim Diabólico, em 1948. Também há outras experiências mais recentes, como Birdman (Joaquin Oristell, 2015) e Victoria (Sebastian Schipper, 2015).
Desta maneira, o longa combina as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias com uma técnica que já havíamos visto em outras ocasiões. Trata-se de um acerto que faz com que o espectador se envolva plenamente com os protagonistas e perceba a ação em “tempo real”.
Tanto o trabalho interpretativo quanto o técnico requerem um esforço maior, pois ao rodar em tomadas tão extensas, tudo precisa ser perfeitamente cronometrado e calculado, inclusive as condições atmosféricas.
A ilusão do plano-sequência, com seus cortes milimétricos e quase imperceptíveis, desperta uma sensação de angústia nos espectadores. Não somos mais espectadores passivos de uma tragédia, e sim cúmplices. Se os protagonistas não conseguem escapar, nós também não conseguimos. Nesse sentido, o aproveitamento da luz natural, os espaços, os rostos e os efeitos especiais sutis enfatizam a ação.
O espectador acaba se sentindo preso no labirinto das trincheiras, sentindo empatia pelos protagonistas e sentindo o amor que atravessa a tela.
Música e imagem conjugam uma beleza digna de calafrios na qual a energia é a chave. A câmera nunca olha para trás, nunca retrocede, só avança com o passo dos personagens. A música surge nos momentos de maior tensão, lembrando-nos, de certa forma, de Hitchcock.
A complexidade de 1917 reside, precisamente, no quanto é difícil tirar proveito dos recursos naturais, do jogo de claro-escuro, da luz natural e da urgência que pretende transmitir. Também não podemos nos esquecer de uma equipe que conseguiu recriar um cenário hostil repleto de trincheiras nas quais viviam e morriam inúmeros jovens recrutados para uma guerra que, assim como todas, era absurda.
1917: uma experiência cinematográfica
A sensação de ver um filme sem cortes, embora seja uma ilusão, gera uma incerteza no espectador. Uma incerteza que se sustenta de forma trágica com o corte mais longo, evidente e meditado do filme. Após sofrer um disparo, passamos a uma tela preta, um preto eterno que, longe de nos aliviar, aumenta a nossa angústia. Acabou tudo? Não, absolutamente não. O corte drástico serve apenas como um ponto ao qual se segue uma história que ainda tem muito a dizer, que ainda guarda tomadas infinitas e asfixiantes.
Dez indicações ao Oscar, mas apenas três estatuetas. Foram aquelas mais técnicas, mas não por isso menos importantes. Um filme não é nada sem um roteiro sólido, mas também não tira seus méritos exclusivamente do roteiro. Desde os figurinos até a música, passando pela interpretação e a fotografia, o cinema é uma arte complexa, um árduo trabalho em equipe no qual todos os elementos são importantes, fundamentais.
Provavelmente este é um dos meus artigos menos imparciais, mas como em toda crítica e em toda arte, o gosto desempenha um papel fundamental. Não sou uma apaixonada pelo cinema bélico que se torna antibelicista, mas sou uma grande admiradora de Mendes e de Roger Deakins (o gênio responsável pela fotografia de 1917).
Mendes me cativou com Beleza Americana, me hipnotizou e me convidou a mergulhar em um filme que, sem sobressaltos demais, me acertou em cheio e continua me fascinando nos dias de hoje. Agora, ele conseguiu me surpreender e me fazer encontrar a beleza em um entorno tremendamente hostil.
Toda essa forma inovadora de apresentar as cenas tem como objetivo nos dizer algo que já sabemos e que o cinema repetiu em diversas ocasiões: as guerras são absurdas, o ser humano é absurdo, e enquanto isso, a natureza segue seu curso. Porque se afogar enquanto as cerejeiras florescem nunca havia sido tão significativo, ver a morte onde surge a vida ou ver a destruição humana em um entorno natural que luta para florescer é poético, catártico e revelador.
A natureza age como um personagem a mais, alheio aos humanos, mas onipresente, enquanto a árvore se eleva como o símbolo mais significativo. Uma árvore presente no começo e no final, fazendo deste filme algo cíclico. Muito além dos aspectos técnicos, 1917 é uma lição de humanidade, uma clara homenagem àqueles que viveram a Primeira Guerra Mundial, àqueles que viram a morte em suas mãos e seus sonhos sepultados pela lama.
“Eu quis que a paisagem fosse mais um personagem da história; uma voz que desse outra perspectiva da guerra. E eu precisava ter tempo e espaço para o lírico dentro de um mundo perdido”.
-Sam Mendes sobre 1917–