O Milagre: o eterno debate entre ciência e religião

No filme "O Milagre" nos é mostrado um fenômeno que era real. As "garotas de jejum" eram meninas na época vitoriana que se tornaram famosas e notórias por (supostamente) terem passado meses, ou mesmo anos, sem comer. O que estava por trás deste fato?
O Milagre: o eterno debate entre ciência e religião
Valeria Sabater

Escrito e verificado por a psicóloga Valeria Sabater.

Última atualização: 11 março, 2023

Engana-se quem acredita que o filme da Netflix, O Milagre, tem como único objetivo apenas nos contar uma história que aconteceu em 1862. São histórias, mensagens e conceitos que são cíclicos, que se repetem e que estão inseridos na essência da nossa humanidade. Referimo-nos a esse eterno confronto entre o fanatismo e a ciência, entre a fé e a razão.

Esta produção dirigida por Sebastián Lelio e estrelada por uma eficaz Florence Pugh nos conta a história da enfermeira Lib Wright, cuja missão é ir a uma pequena cidade da Irlanda para observar uma menina que, supostamente, não come há quatro meses. Apesar desse jejum permanente, a pré-adolescente parece gozar de boa saúde.

O Milagre é baseado no romance da escritora Emma Donoghue ( The Wonder, 2016). Assim, embora seja verdade que nem a história nem os personagens de Lib Wright e Anna O’Donnell realmente existiram, o fenômeno das meninas “viviam sem comer” foi um fato real e está bem documentado.

Este filme traz-nos uma história, uma metáfora de fervente atualidade na qual está impressa uma importante mensagem. Vivemos num mundo em que, por vezes, a verdade não é relevante nem tida em conta. Importa o que cada um quer acreditar, mesmo que isso leve a conspirações, fanatismos e mentiras.

No século 19 foram muitas as jovens que, pressionadas pelo fechamento de sua fé, supostamente pararam de comer a ponto de serem vistas pela sociedade como criaturas divinas.

O prodígio
Anna O’Donnell é uma garota que, presa no fanatismo da religião e no peso do trauma, para de comer.

O Milagre e a história das jejuadoras

O Milagre começa como um convite. O espectador é guiado do nosso presente para um cenário passado, indicando que “sem histórias, não somos nada”. Essa pequena pincelada é fundamental para captar a essência desta produção que, como já referimos, não procura apenas trazer-nos uma experiência única que se passou na Irlanda do século XIX.

Toda história pretende nos convidar à reflexão, e por isso é necessário ver este filme de uma perspectiva mais ampla, sensível e crítica. Para isso, é preciso caminhar de mãos dadas com a enfermeira Lib Wright, que junto com uma freira, tem a responsabilidade de entender como uma menina consegue sobreviver sem comer.

Também é importante destacar o cenário psicossocial que envolve a jovem Anna O’Donnell. Tanto a família, quanto os vizinhos da cidade, a igreja e até os próprios médicos veem esse fenômeno com admiração e devoção. A menina é santa, a menina se alimenta do maná do céu e não há outra explicação senão divina. Em meio a essa situação, a enfermeira Wright testemunha o lento mas inevitável declínio físico da menina.

A história das meninas que não queriam comer

Meninas jejuadoras existiam e foi nesse contexto em que algumas meninas se recusavam a comer que surgiu pela primeira vez o termo anorexia. Foi entre 1810 e 1870 que surgiram nomes como Ann Moore e Sarah Jacob. Meninas que, movidas pelo fanatismo religioso, diziam não precisar de comida porque haviam sido escolhidas por Deus.

Essas meninas ficaram bastante famosas, a ponto de ser comum visitá-las e deixar presentes (às vezes grandes doações financeiras). Era óbvio que as famílias as alimentavam quando não havia testemunhas por perto. No entanto, houve casos realmente dramáticos. A pequena Sarah Jacob acabou morrendo de fome enquanto uma enfermeira a observava e estudava seu caso.

Os últimos casos foram descritos no final do século XIX, quando a perspectiva científica passou a prevalecer sobre a religião e a fé. Embora em certas regiões do Reino Unido mais rural, as mulheres em jejum continuassem a atrair acólitos e devotos cegos que reafirmavam sua verdade. Aquela em que se dava veracidade às meninas santas capazes de passar anos sem comer, graças ao poder do divino. Ao “maná”.

O Milagre é uma história sobre um trauma oculto e o uso da religião e do fanatismo para expurgar um suposto pecado.

O prodígio
A religião às vezes funciona como um instrumento de tormento e punição pelos supostos pecados cometidos por cada um, mesmo que seja apenas uma criança.

Fraude, fanatismo e a fragilidade da verdade

Não queremos revelar os interessantes meandros finais com os quais culmina o filme O Milagre. Agora, podemos apontar que esta produção nos fala sobre traumas psicológicos e como a religião atua como um castigo para expurgar o que é entendido como pecado. A enfermeira Lib Wright torna-se aquela figura encarregada de desafiar os dogmas, de trazer luz à irracionalidade.

Porém, quando o protagonista finalmente traz a verdade, ninguém quer ouvir. Porque pesa mais a história da fé, porque reina o fanatismo e ninguém quer quebrar esse tecido do mágico e do milagroso que há anos se estabelece nestes lugares. Também naquelas mentes que tacham de hereges aqueles que defendem a ciência, entrincheirando-se em seus dogmas a ponto de deixar morrer uma menina inocente.

Naquela Irlanda do século XIX, as redes sociais não existiam como hoje, mas a desinformação também se espalhava como um vírus, como o manto de neblina que obscurece tudo por meio de argumentos absurdos e conspiratórios.

A verdade, independente do tempo ou da circunstância, costuma ser eternamente violada e questionada sob as mais variadas fogueiras. Às vezes por religião, outras por interesses sutis e quase sempre por ignorância.


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  • Breslau, N., Wilcox, HC, Storr, CL, Lucía, VC y Anthony, JC (2004). Exposición al trauma y trastorno de estrés postraumático: un estudio de jóvenes en las zonas urbanas de Estados Unidos. Revista de salud urbana: boletín de la Academia de Medicina de Nueva York , 81 (4), 530–544. https://doi.org/10.1093/jurban/jth138.

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