Odeio a minha família e adoro os estranhos
A família é o pequeno universo onde aprendemos a nos transformarmos em membros de uma sociedade. Não há famílias perfeitas, porque não existem seres humanos perfeitos e nem sociedades perfeitas. Cada família transmite e reproduz os seus traumas, neuroses e vazios em maior ou menor grau. No entanto, em alguns casos, isto toma grandes proporções e marca a pessoa de forma profunda e negativa.
Dentro da família sempre existe algum tipo de pequenos ou grandes ódios. Embora pareça paradoxal, isto não exclui a existência de um grande amor também. Assim são os sentimentos humanos, ambivalentes e contraditórios. O grupo familiar não está isento disso e por isso é considerado normal que abrigue rancores e mesquinharias.
“Administre a sua casa e saberá o quanto custa a lenha e o arroz; crie seus filhos, e saberá quanto você deve aos seus pais”.
– Provérbio Oriental –
No entanto, existem casos nos quais não se fala de pequenos ódios, mas de graves rupturas nos afetos. Não são poucas pessoas no mundo que declaram abertamente sua total rejeição pela família de onde vieram. Detestam o seu grupo familiar. Sentem vergonha da sua origem. O engraçado é que, ao mesmo tempo, sentem grande apreço e admiração pelos estranhos, por aqueles que não fazem parte do seu ambiente familiar.
Como uma pessoa chega a odiar a própria família?
O ódio pela própria família contém uma grande contradição. Isso implica, de um modo ou de outro, odiar a si mesmo. Fazemos parte desse agregado familiar genética e socialmente, por isso existe um ponto onde somos inseparáveis. Apesar disso, muitas pessoas experimentam uma sensação de falta de amor e rejeição por parte do grupo familiar. Corresponde a uma atitude adolescente, mas persiste em muitos adultos.
O núcleo familiar não é como a pessoa deseja, e isso é motivo suficiente para negar o seu amor.
É comum que esse ódio surja porque a pessoa sente que a família falhou de uma forma séria ou quando sofreu maus-tratos graves. A família falha quando a pessoa gera grandes expectativas que não se cumprem, quando deixa de atender algum aspecto básico do desenvolvimento infantil ou na implementação de uma educação incoerente, quando diz uma coisa e faz outra bem diferente.
Os maus-tratos, por sua vez, englobam muitas realidades: a negligência física, emocional, verbal, o abuso físico ou sexual. Além disso, a negligência ou o descuido também são uma forma de maltratar. Tudo o que envolve uma negação sistemática do valor de uma pessoa pode ser considerada uma prática abusiva.
Há casos em que os membros da família têm vergonha de si mesmos ou se sentem inferiores diante dos demais. São educados a partir de uma perspectiva de autoaversão. Essas famílias podem ser muito fechadas, avessas ao contato externo. Essa pode ser uma das sementes do ódio ou do rancor posteriores e a principal causa para uma percepção de que os estranhos são mais importantes do que a própria família.
A valorização excessiva dos estranhos
Durante a adolescência todos nós nos aborrecemos um pouco com a nossa família. A busca pela nossa identidade reforça esse conflito. Normalmente as crianças aceitam com mais ou menos passividade os parâmetros familiares, mas na adolescência começamos a questioná-los e nos fixamos em suas falhas e erros. Quando amadurecemos e nos tornamos adultos, aprendemos a superar esse estresse.
Durante a adolescência os estranhos começam a ter grande importância para nós. Por isso, a opinião do nosso grupo de amigos é muito mais importante que a dos nossos pais. Aos poucos vamos resolvendo essas contradições e encontramos um certo equilíbrio. Só conseguimos resolver esses conflitos completamente quando saímos da casa dos pais. Gradualmente, conseguimos avaliar tudo o que a família nos deu e o que nos tirou. Nós acabamos entendendo que, na maioria dos casos, ela nunca quis realmente nos machucar.
Às vezes o conflito termina e a pessoa, mesmo adulta, não precisa sair de casa; ou se sai, percebe que o paraíso não estava fora do lar. As pessoas lá fora também não cumprem a sua palavra ou não atendem às suas expectativas. Neste sentido, podemos cair na tentação de culpar a família pelas nossas próprias deficiências. Ou então na armadilha de acreditar que para os outros, para os estranhos, a vida é mais fácil do que para nós; que estão mais capacitados porque tiveram uma família melhor.
Odiar a família e adorar os estranhos é a expressão de um conflito adolescente não resolvido. Talvez você não tenha conseguido entender que os outros grupos familiares também têm os seus problemas, os seus segredos e as suas neuroses. Talvez odiar nossas origens nos ajude a evitar as responsabilidade ou continuarmos dependentes. O problema é que, enquanto não superarmos esses desconfortos, dificilmente poderemos nos colocar em uma posição de adultos.
Imagens cortesia de Nidhi Chanani.