Pelos Meus Olhos: retratando a violência de gênero

Pelos Meus Olhos: retratando a violência de gênero
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 05 janeiro, 2023

Um assunto tão difícil, tão desagradável e, ao mesmo tempo, tão comum, não é fácil retratar. A violência de gênero, infelizmente, continua levando muitas vidas em 2018; e eu não me refiro apenas a levar vidas em um sentido literal, isso também, mas a privar as vítimas de toda qualidade de vida, de toda possibilidade de viver plenamente. Icíar Bollaín capturou, da maneira mais natural possível, as sequelas, consequências e o pano de fundo desse tipo de violência no filme Pelos Meus Olhos (2003).

Bollaín é caracterizada por um cinema que pretende ser um verdadeiro reflexo da realidade, um cinema natural, cujos personagens são retirados da nossa realidade cotidiana; desde a linguagem, aos figurinos, aos gestos e aos cenários… tudo refletido em seus filmes é carregado de um realismo avassalador.

A diretora, além de afirmar inúmeras vezes quão necessária é a presença de mulheres por trás das câmeras, também declarou que, para ela, o cinema é um caminho em direção à mudança, uma porta que se abre para tentar melhorar o que está errado na sociedade.

Pelos Meus Olhos conta a história de Pilar, uma mulher que foge com seu filho para a casa de sua irmã. Ela foge cansada da situação que vive ao lado de seu marido, Antônio, que a maltrata física e psicologicamente.

Pilar consegue um emprego na igreja que abriga a pintura O Enterro do Conde Orgaz como caixa. Lá, ela estabelecerá um relacionamento com algumas de suas colegas de trabalho e começará a se interessar por arte. Ao mesmo tempo, Antônio participará de sessões que o ajudarão a controlar sua raiva e tentará recuperar sua esposa.

O interessante do filme é a forma como ele aborda o problema, a naturalidade com que cada personagem é tratado e os diferentes pontos de vista que ele nos apresenta. É muito fácil julgar a vítima quando não se conhece as circunstâncias que a cercam, é muito fácil dizer “deixe-o ou fique longe porque não é bom para você”. No entanto, não parece mais tão simples quando esse abuso deixa a vítima em um estado de confusão, de perda de identidade e autoestima.

Pelos Meus Olhos nos permite refletir sobre a violência de gênero, sobre o tratamento que damos na sociedade à situação da vítima, mas também à do agressor. Icíar Bollaín propõe este drama que visa ser uma tomada de consciência, um passo para a mudança, rumo a uma sociedade melhor e mais igualitária.

Cena do filme 'Pelos Meus Olhos'

Gênero e sociedade

A violência de gênero não precisa ser física ou vinculada exclusivamente à esfera doméstica. A violência de gênero, como o próprio nome sugere, é exercida sobre outra pessoa por causa do gênero; isto é, considerar a “superioridade” de um gênero sobre outro. Costumamos associá-la à violência contra as mulheres, mas não devemos excluir os ataques de homofobia ou transfobia, profundamente ligados a essa suposta “superioridade”.

A violência também não precisa ser física, pode ser psicológica e semeia na vítima um forte sentimento de insegurança, medo e falta de autoestima. Além disso, é muito mais difícil sair dela se quem exerce essa violência é nosso parceiro ou uma pessoa em quem confiamos, como acontece com Pilar no filme.

O sistema patriarcal fez as mulheres serem vistas como o “sexo frágil”, uma definição que, até recentemente, continuava a ser muito aceita.

Este sistema continua sendo muito bem estabelecido; só temos que dar uma pequena olhada nas definições que ainda estão sendo dadas por homens e mulheres para comprovar isso.

Cena do filme 'Pelos Meus Olhos'

O termo mulher ainda tem conotações pejorativas frente ao termo homem. Essa ideia de que o masculino representa o forte, a virilidade, a coragem… fez com que nossa sociedade se edificasse de acordo com essas afirmações, sem questionar se elas são verdadeiras.

Então, no filme Pelos Meus Olhos, vemos como a própria mãe de Pilar, apesar de ter visto a filha fugir, diz a ela que uma mulher não é nada sem um homem, que ela deve voltar para junto de seu marido porque é seu dever.

Da mesma forma, os homens que vão à terapia com Antônio também não questionam a seriedade de suas ações; são eles que trabalham, levam o dinheiro para casa e, portanto, suas mulheres devem estar ligadas a tarefas domésticas, devem obedecer e sempre aceitar suas condições.

Esses homens retratados em Pelos Meus Olhos são o fruto de inúmeras gerações que foram criadas no machismo mais estabelecido; em suas casas, eram suas mães e irmãs que faziam tudo o que o homem pedia, eram as encarregadas do lar e da família.

Pelos Meus Olhos, a evolução da mulher

Com o passar do tempo, a mulher conseguiu se firmar no mundo do trabalho e, assim, alcançar (em parte) sua independência. Com a independência, se alcança também a divisão de tarefas, mas é muito difícil mudar a mentalidade de uma série de gerações.

Pilar viu em sua própria casa como sua mãe era uma vítima deste sistema, como fazia tudo o que era esperado de uma “mulher boa”: casar na igreja, ter filhos e ficar em casa para cuidar deles.

Sua irmã Ana, por outro lado, tem uma natureza mais crítica em relação a este modelo social, sendo capaz de ver o sofrimento e a injustiça que sua irmã vive, os erros de seu falecido pai, e até mesmo a criação de um relacionamento saudável e igualitário com o seu parceiro.

O marido de Ana representa a “nova realidade masculina”, um homem que colabora nas tarefas domésticas e que trata a mulher como uma igual. Tudo isso contrasta com o forte caráter conservador de sua mãe e com Pilar, cuja autoestima foi completamente deteriorada e é incapaz de imaginar uma vida sem Antônio.

Cena do filme 'Pelos Meus Olhos'

Graças ao trabalho no museu, Pilar descobre a arte, que será uma rota de fuga, uma saída e uma esperança. Ele começará a se interessar em progredir em seu trabalho e, finalmente, voltará a sonhar e a ter aspirações.

Também no museu, Pilar conhecerá suas colegas de trabalho, mulheres muito diferentes, com sonhos diferentes, mas todas elas independentes. Essas mulheres são mais parecidas com Ana, algumas têm relacionamentos mais ou menos estáveis, outras conversam com homens pela internet… mas todas vivem suas vidas, sem dependência alguma de nenhum homem.

Icíar Bollaín desenha essa nova realidade das mulheres que se mistura com um passado patriarcal que ainda está profundamente enraizado, cada personagem representa uma realidade. O grupo de terapia masculina supõe aquele retrato do machismo que ainda persiste, onde os homens não entendem que suas mulheres não são objetos de sua posse.

Pelos Meus Olhos não deixa fios soltos, abrange todas as facetas da violência doméstica e uma sociedade em que herdamos um machismo institucionalizado. Não esquece tampouco a vítima silenciosa que é Juan, o filho de Pilar e Antônio, nem as consequências que todos esses anos de abuso deixaram em Pilar.

Por outro lado, mostra um pouco de esperança. Mostra que algo está mudando no mundo, que as mulheres agora assumem papéis diferentes, que a masculinidade pode assumir muitas formas, que os homens também choram e, acima de tudo, nos permite refletir sobre um tema que, infelizmente, continua destruindo vidas.

“Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que seja a liberdade nosso próprio sustento”.
-Simone de Beauvoir-


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