Quando a única saída é viver

Quando a única saída é viver

Última atualização: 29 maio, 2016

Raramente paramos para pensar no quão fantástico é o conceito de “viver”, em termos de emoções, pensamentos e opções. Pelo menos, em um só dia temos a possibilidade de ficarmos entediados e motivados, alegres e tristes, de amar e ser amados, de ir e voltar, e de

Isto pode parecer um pouco óbvio. Logicamente, hoje em dia temos acesso a vários meios de informação que ultrapassam a nossa capacidade de abranger tudo o que nos é transmitido, e portanto, apenas “tê-los” perde importância. Enquanto isso, passa a ser primordial conseguirmos gerir o nosso tempo de forma que dê para abarcar a maioria desses meios.

Mas o que aconteceria se a nossa única opção diária para pensar, sentir ou fazer fosse a de viver? Note que não é uma das opções citadas no início, mas muito possivelmente nem nos demos conta disso. “Viver” entendido como “continuar vivendo” ou “manter-se vivo” é algo tão básico que nem sequer reparamos nisso.

No entanto, na verdade, grande parte da população mundial se levanta e se deita todos os dias com este dilema. O de seguir vivendo, ou não, por uma quantidade de causas muito maior do que uma mente humana acostumada ao bem-estar pode compreender. Fome, pobreza, doenças terminais e, é claro, a guerra.

O dilema de viver

Vamos considerar o último exemplo, mais precisamente a guerra civil da Síria. Em termos gerais, um dado a ter em conta é que em 2016, já se passaram mais de 5 anos desde que os civis sírios começaram a morrer indiscriminadamente. No dia de hoje, já são mais de 250.000 vidas arruinadas.

Embora a nossa sensibilidade esteja bloqueada diante da infinidade de notícias semelhantes com as quais nos bombardeiam diariamente, na sociedade em que se perdem essas vidas elas assumem um impacto monstruoso em todos os níveis. Seria impossível resumir em palavras a extensão das alterações sofridas pelas vítimas sobreviventes ao conflito.

Edifício em ruínas

Ainda assim, todas essas mudanças passam pelo mesmo dilema: viver ou não viver.  Será que vou continuar vivo esta noite? Será que eu vou viver para ver a minha filha crescer? São perguntas lógicas, humanas e até mesmo necessárias perante uma situação em que já chegaram a cair 512 bombas por dia a ritmo irregular sobre um único povo.

Pois bem, contra todos os prognósticos, os sobreviventes perduram mentalmente. Eles não perdem a cabeça. Lutam para se manter mental e fisicamente vivos. E além disso, os sobreviventes encontram uma forma de dar “sentido” (se é que se pode fazer isso) ao conflito, fazendo parte dele.

Fazem isso abandonando suas casas para se lançarem à imigração, lutando pela resistência, com poucas garantias, ou mediante trabalhos de apoio social a grupos necessitados (oficinas de criação de negócio para mulheres que nunca trabalharam, trabalho de assistência médica nos hospitais, trabalho de informação e documentação, etc.).

Eles se mantêm alerta, numa pilha de nervos, semblante alterado por duros flagelos e mantendo os poucos costumes que a guerra se esqueceu de destruir. Eles lutam para conseguir o sustento de suas famílias. E conforme vou me informando e me aproximando desta realidade, uma pergunta ecoa cada vez com mais força na minha cabeça: Como é possível eles conseguirem? 

Como é possível viver?

É complicado imaginar a forma como um ser humano é capaz de sobreviver a tais situações. Podemos pensar em opções de onde poderiam vir esses comportamentos altruístas, como a resiliência, o medo intenso ou o sentimento social de união perante à adversidade. Eles também poderiam ser explicados pela capacidade plástica do ser humano de normalizar coisas impossíveis de normalizar, como a morte.

Todas estas opções extraídas da psicologia e muitas mais não referidas aqui poderiam ser válidas para começar a entender como funciona a mente de uma pessoa que se encontra neste tipo de situação. Mas há algo que os envolve diretamente na situação, como humanos e seres vivos: a ausência de outra opção, senão a de viver.  

Mãe e filha dando as mãos em um campo de refugiados

Pode parecer insensível e até hipócrita dizer isto a partir do nosso lado do espelho, mas é verdade. Eu explico: por que dizemos que eles não têm mais opções? Realmente isto não é correto, eles sempre têm a opção de não fazer nada, e de esperar para saber se vão viver ou morrer nas mãos daqueles que os atacam. Praticamente podem fazer isso. Também seria lógico, dadas as circunstâncias.

Quando dizemos que eles não têm mais opções, fazemos alusão a que humanamente sua natureza os empurra para a sobrevivência. Para o uso dos recursos mentais e físicos, para a luta e busca de sentido. Temos visto este exemplo de ausência de opção em muitas histórias de sobreviventes que relataram suas experiências, com os autores e psicanalistas Viktor Frankl, Erich Fromm ou Boris Cyrulnik, entre outros.

Algo em comum

E isso é algo que definitivamente compartilhamos com aqueles que vivem nestas situações: a natureza humana. É essa natureza que possibilita sentir medo, ser resiliente, normalizar, lutar ou escapar, é a mesma que faz os nossos dias tão ricos em emoções, pensamentos e opções. Mas, sobretudo, é exatamente aquilo que nos empurra a viver.

Mão de um menino negro segurando a de um homem branco

Podemos viver alienados do mundo exterior, trancados numa bolha de informações. Podemos decidir não fazer nada perante este conflito, ou fazer tudo. Porém, sempre, em última instância, contaremos com o recurso infalível da nossa humanidade. De olhar o mundo com olhos de ser humano, de sentir como um ser humano e, sobretudo, de aprender como um ser humano. Aprender, pois se não formos capazes, se não houver outra saída, se tudo parecer perdido, sempre teremos a opção de viver.

Texto de Eduardo Torrecillas


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