Trauma de apego e autocrítica: como eles estão relacionados?
Autoaversão, ou auto-ódio, é uma crítica extrema de si mesmo. Poucos sentimentos são mais devastadores para nossa saúde mental do que essa realidade que, embora nos surpreenda, é muito comum. Muitos adultos o carregam por boa parte de suas vidas. Infelizmente, também é abrigado por algumas crianças e adolescentes que, desde cedo, desenvolvem uma lenta autoaversão.
A sensação de ser apenas uma generosa coleção de defeitos e até mesmo indigna de afeto tem suas raízes na infância. A origem, o gatilho sombrio, reside naquela família disfuncional ou em um pai que cria e educa por meio do distanciamento e até da violência. Referimo-nos àquelas dinâmicas em que o afeto seguro e a segurança estão ausentes porque são substituídos pelo desprezo, abandono ou maus tratos.
O que acontece no cérebro da criança diante de necessidades psicoafetivas não atendidas é muito complexo. Também comovente. Assim, uma das consequências mais frequentes é desenvolver uma voz interna que se despreza, que se envergonha de si mesma. É um fenômeno que aparece com alta frequência e que vale a pena entender.
“Com fios de lã biológicos, afetivos, psicológicos e sociais, passamos a vida nos tecendo a nós mesmos.”
-Boris Cyrulnik-
O que são traumas relacionados ao apego?
Um trauma de apego é a quebra no processo de vínculo de uma criança com relação às suas principais figuras de cuidado. Tal experiência se manifesta de várias maneiras, como negligência, abuso ou abandono. Crescer em ambientes dominados por tantas deficiências e ameaças faz com que os pequenos cresçam dominados pela ansiedade, pelo medo e pela falta de afeto.
Todos nós podemos ter uma ideia do que essas experiências significam no nível psicossocial, mas… E no campo psicobiológico? Um trabalho de pesquisa da Universidade Médica de Graz, na Áustria, destaca um aspecto importante. O apego forma a base do nosso desenvolvimento psicobiológico. Não ter esse apoio emocional confiável afeta o desenvolvimento do cérebro.
Poderíamos dizer que os pais que proporcionam aos filhos um apego seguro e nutritivo configuram “moldes” internos que servem de matriz para a correta evolução neurobiológica e psicológica dos filhos. No entanto, qualquer interrupção nesse processo nos deixa sem uma base e crescendo em modo de sobrevivência…
Experimentar uma educação sem afeto sólido, seguro e estimulante nos faz crescer pensando que há algo errado conosco, algo pelo qual nossos pais não nos amaram como precisávamos.
Trauma de apego e autocrítica, uma ferida no tecido psicológico
Todos nós podemos experimentar, em algum momento, uma percepção negativa em relação a nós mesmos. Cometemos erros, por exemplo. Nos desesperamos ao cair em relacionamentos que dão errado uma e outra vez. Tem dias que não gostamos muito de nós mesmos quando nos olhamos no espelho. No entanto, todas essas experiências são geralmente ocasionais; assim como elas vêm, elas vão.
Agora, o problema é que o trauma de apego e a autocrítica constituem uma relação muito recorrente. Muitos daqueles que sofreram uma criação e educação disfuncional e prejudicial desenvolvem uma crítica interna que os destrói quase diariamente. Essa sabotagem contra a própria pessoa se manifesta de várias formas e é importante defini-la. Vamos ver isso.
1. A armadilha da comparação social
Como Leon Festinger nos explicou em sua teoria da comparação social, todos nós mostramos esse impulso de nos comparar com os outros. Fazemos isso para aprender, para nos definir, para analisar nossas habilidades, opiniões, etc. No entanto, as pessoas com trauma de apego tendem a olhar constantemente para os outros para se avaliarem.
Ao fazer isso, elas só veem deficiências, defeitos, aspectos que processam como incorretos. Os outros sempre parecem mais felizes, mais amáveis. A vida dos outros é percebida como melhor do que a própria e essa percepção é alimentada por um diálogo interno crítico e exaustivo.
2. A dificuldade em construir relacionamentos felizes
O trauma de apego e a autocrítica se manifestam, sobretudo, na forma como nos relacionamos com os outros. Afinal, quem não conseguiu entender na própria pele o que significa ser amado, cuidado ou respeitado, terá sérias dificuldades de se relacionar com os outros.
Sempre haverá aquela voz em sua cabeça que o enche de dúvidas, que lhe diz que a qualquer momento você será machucado de novo, ou que é melhor fugir antes que o façam. As dúvidas, os medos, a necessidade de ser amado e até mesmo a angústia inerente ao sofrimento, como na infância, traçam relacionamentos e amizades muito tortuosos.
3. Pensamento do tipo tudo ou nada
O pensamento dicotômico é uma distorção cognitiva que nos faz ver a realidade através de extremos. Aquela inflexibilidade de pensamento para dizer coisas como “todo mundo quer me irritar, ninguém me ama, eu faço tudo errado ou minha vida nunca vai dar certo”.
O trauma do apego e a autocrítica constroem aquele diálogo que reduz todo o valor pessoal e transforma a realidade em um cenário inseguro. Ameaça, traição e condenação parecem estar sempre ao virar da esquina.
4. A sensação de inutilidade (autossabotagem)
As automanipulações inconscientes são o pão de cada dia para a pessoa que sofreu traumas de apego na infância. Elas lidam com uma tendência quase constante de boicotar seus objetivos, de minar seu potencial quando tentam realizar qualquer projeto. Da mesma forma, a autossabotagem as leva a uma evitação constante.
Para essas pessoas sempre será melhor fugir ou abandonar qualquer situação, antes de se comprometer e lutar pelo que querem.
Um trauma de apego pode condicionar nossas vidas de várias maneiras. O cérebro muda em decorrência desse trauma precoce, justamente quando boa parte de suas estruturas está se desenvolvendo. Portanto, é comum que, à medida que a criança cresce, ela seja inoculada com uma conversa interna prejudicial e debilitante que a impede de construir uma autoestima e um autoconceito saudáveis.
O que podemos fazer nesses casos? Uma abordagem terapêutica de notável relevância é a terapia de Dessensibilização e Reprocessamento através dos Movimentos Oculares (EMDR) da Dra. Francine Shapiro. Buscar ajuda especializada e tratamentos com comprovação científica é a melhor estratégia para lidar com traumas. Vamos manter isso em mente.
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