Viés de retrospectiva: eu já sabia que isso ia acontecer
Saímos de casa para ir à praia e o sol está brilhando, mas é só chegar na orla que as nuvens começam a aparecer no horizonte, ameaçando uma tempestade. Um dos nossos amigos não hesita em dizer “Eu nem ia vir, sabia que esse dia acabaria sendo desperdiçado!”. Longe de possuir uma bola de cristal ou poderes de adivinhação, estas pessoas demonstram um viés de retrospectiva.
Em nossa família, amigos, colegas de trabalho e nas redes sociais, são muitas as pessoas que agem como oráculos de adivinhação e terríveis pessimistas, que têm certeza de que as coisas vão acontecer como elas pensam.
“Sabia que isso ia acabar assim!”, “Eu te falei, tá vendo? O que eu falei acabou acontecendo”… Este tipo de raciocínio nunca deixa de nos surpreender. Isso tudo por um motivo essencial. Essas pessoas que saem por aí nos dizendo que falaram tal coisa, que já sabiam que isso ou aquilo ia acontecer, na verdade nunca fizeram nada disso.
O viés do qual estamos falando acontece por uma falha de memória: acreditar que o que aconteceu, aqui e agora, já tinha sido previsto, quando na verdade não foi. Estamos diante de uma falsa lembrança. Uma lembrança clara do desfecho das coisas, antes que acontecessem. Você conhece alguém assim?
Viés de retrospectiva: mais comum em contextos negativos
As pessoas são feitas de carne, osso, sonhos, desejos e inúmeros vieses psicológicos. No entanto, não temos consciência disso. Esses mecanismos pelos quais cometemos erros na maneira como processamos a realidade, fazemos julgamentos imprecisos ou interpretações ilógicas são muito comuns.
Entretanto, além de lamentar por isso ou de fazer uma introspecção para detectá-los, podemos refletir. Todos nós fazemos usos destes mecanismos porque eles são uma necessidade evolutiva, um recurso do cérebro que desenvolvemos com o tempo. Qual é a sua finalidade? Economizar tempo. As pessoas são incapazes de processar cada elemento ou variação com os quais têm contato. A mente precisa reagir de forma certeira, mas também muito rápida.
No que isso se traduz? Em erros, em suposições erradas, na clássica tendência de dar validade a dados que se ajustam às nossas crenças (viés de confirmação) ou em acreditar que nossas ideias são as mais aceitas e extensas (viés de falso consenso). Assim, o viés de retrospectiva define um tipo de fenômeno psicológico que aumenta de forma exponencial em tempos de mudanças sociais e crises econômicas. Vamos analisar isso.
O viés de retrospectiva e o Watergate
A psicologia passou a se interessar pelo estudo e definição dos vieses psicológicos no começo dos anos 70. As figuras mais representativas desse campo foram, sem dúvida, o doutor Amos Tversky e o psicólogo e Prêmio Nobel em economia Daniel Kahneman.
Graças às suas pesquisas sobre as heurísticas, perceberam que grande parte da população apresentava mais de um viés. O doutor Baruch Fischhoff foi um pouco além e realizou seu próprio experimento entre 1974 e 1975.
Pouco antes de Nixon renunciar ao seu cargo, Fischhoff perguntou a um amplo grupo da população se o presidente seria reeleito. A maioria disse que sim. Bom, alguns meses depois e após o escândalo Watergate, a maioria afirmava saber o que ia acontecer. Todos pareciam ter se esquecido do seu primeiro raciocínio.
Quando as coisas dão errado: o que devemos fazer e não fazemos, apesar do suposto conhecimento prévio
O viés de retrospectiva aparece com mais frequência quando aquilo que dizemos saber tem consequências negativas ou é negativo por si próprio. A chegada de uma crise, uma demissão, um acontecimento negativo global, etc. É nesses contextos que mais aparecem vozes antecipando o que aconteceria.
Foi isso que aconteceu com a crise financeira de 2008. Muitos economistas não a viram chegar, mas uma vez que aconteceu, a maioria afirmou que os indicadores a previam.
Também acontece um fenômeno adicionado a isso: a busca por culpados. Nessas situações, não demora muito para surgirem frases como “Eu já sabia que esse desastre aconteceria em algum momento, agora é preciso ir atrás de quem permitiu que isso acontecesse”.
Por que usamos o viés de retrospectiva?
Todos nós conhecemos mais de uma pessoa que faz uso do viés de retrospectiva. São perfis um pouco incômodos, que atribuem a si mesmos o poder de se antecipar aos acontecimentos. E por que eles fazem isso? Por que suas mentes surgem com julgamentos falhos quando, na verdade, nunca conseguiram antecipar coisa alguma?
Quando acontece uma situação que é negativa ou adversa por si própria (uma crise econômica, um desastre natural, etc), a possibilidade da nossa mente nos enganar com pensamentos como “Isso já tinha sido previsto” oferece uma grande sensação de controle sobre a realidade. Dá uma sensação boa, anula o medo e nos dá mais impulso.
É quase como um mecanismo de defesa, um “Bom, isso é ruim, mas como eu já sabia que ia acontecer, não fico tão impressionado. E, se além disso, eu encontrar os culpados, terei uma maior sensação de poder e poderei me eximir da culpa”.
Esse mecanismo pelo qual fazemos mudanças nas nossas ideias passadas para ajustá-las à realidade – com o objetivo de eliminar possíveis dissonâncias – é, na verdade, muito frequente.
Isso, como a maioria dos vieses apresentados por Daniel Kahneman em seu livro “Pensar rápido, pensar devagar”, foi utilizado por nós alguma vez sem termos consciência da armadilha que nossa mente criava.
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- Tversky, A.; Kahneman, D. (1973). “Availability: A heuristic for judging frequency and probability”. Cognitive Psychology. 5 (2): 207–232. doi:10.1016/0010-0285(73)90033-9