Autoconsciência corporal: o início de muitos sofrimentos

Sabia que quanto mais você rejeitar o seu corpo, mais difícil será compreender e gerenciar as suas emoções? Mente e corpo possuem um vínculo, e não cuidar e valorizar essas entidades tem um efeito nocivo em nós. Vamos explicar.
Autoconsciência corporal: o início de muitos sofrimentos
Valeria Sabater

Escrito e verificado por a psicóloga Valeria Sabater.

Última atualização: 09 abril, 2023

Há pessoas que veem diariamente um ser incômodo e desagradável em seu espelho. Há muitos adolescentes que só se sentem bem com sua imagem quando a embelezam — distorcem — com filtros infinitos. Como se isso não bastasse, há um fato ainda mais assustador: cada vez mais crianças, de 6 ou 8 anos, veem infinitos defeitos em sua aparência física.

Convenhamos, se existe um fenômeno comum em grande parte do nosso planeta, é ver milhões de pessoas lutando contra a insatisfação corporal. Em suas mentes parece haver uma distância enorme entre sua imagem real e a ideal, aquela tão artificial quanto impossível que as leva ao desconforto e à autorrejeição progressiva.

Portanto, o fato de o transtorno dismórfico corporal estar sendo diagnosticado cada vez com mais frequência não nos surpreenderá. Referimo-nos àquela condição em que o paciente busca compulsivamente a perfeição, embora seja extremamente crítico com seu próprio corpo. Acontece a tal ponto de ver defeitos onde não há e de acreditar que vivem num invólucro físico perturbador.

Ansiedade, comportamentos de evitação, obsessões, medos… Quando a mente encontra um corpo com o qual está desafinada, o sofrimento é devastador. A autoconsciência corporal e a forma como a construímos está diretamente ligada à nossa saúde mental e isso é algo que devemos atentar desde a infância.

Os pais têm um impacto direto no desenvolvimento da imagem corporal de seus filhos.

Menina com vergonha devido à sua autoconsciência corporal
A autoconsciência corporal é um elemento chave para a construção do nosso Eu.

O que é autoconsciência corporal?

Entendemos a autoconsciência corporal como o processo pelo qual o cérebro integra nossa imagem física para realizar a construção do Eu. Essa percepção de cada área física, do nosso esquema corporal, constrói a sensação de ser quem somos. Tal construto físico-psicológico é integrado na criança a partir dos 3 anos.

Esse conceito é mais importante do que pensamos. É porque passamos vários séculos concebendo o corpo como algo separado da mente. Esse dualismo está enraizado na teoria clássica do século XVII de René Descartes. Algo assim nos dificultou muito a compreensão de que às vezes certos desconfortos físicos, por exemplo, tinham origem psicológica e não tanto fisiológica.

Além disso, também deu origem a outro fenômeno que observamos há décadas. Uma criança não vem ao mundo odiando seu corpo, ela aprende isso na sociedade e isso afeta sua saúde mental de forma devastadora. Tanto que, em um estudo realizado em diversas universidades europeias, foi revelado como o transtorno dismórfico corporal é cada vez mais comum entre os jovens.

Crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos odeiam seus corpos cada vez mais. Inclusive, aqueles que apresentam essa condição revelam, por sua vez, uma comorbidade psiquiátrica de 71,5% com lesões autoprovocadas e tentativas de suicídio. A autoconsciência corporal costuma ser o início de muito sofrimento.

Existem distúrbios psicológicos que bloqueiam nossa autoconsciência corporal, a ponto de não sentirmos certas sensações corporais como nossas e enxergarmos defeitos físicos que não são reais.

Componentes que compõem esse tipo de autoconsciência

A autoconsciência corporal está enraizada em nosso cérebro por meio de três componentes muito específicos. Estes medeiam e permitem compreender a psicopatologia de grande parte dos transtornos alimentares (TA) e do transtorno dismórfico corporal (TDC). Nós os analisamos a seguir.

  • Propriedade física do corpo (o que vemos). Isso pode chamar nossa atenção. Existem pessoas que se veem horríveis, imperfeitas e até totalmente nojentas. Nem mesmo importa que sejam atraentes. A dismorfofobia pode significar que o que elas veem no espelho não corresponde à realidade.
  • Interocepção (o que sentimos). A autoconsciência corporal também é construída por meio de nossas sensações internas, aquelas que são acionadas dentro de nós. Por mais desconcertante que nos pareça, investigações como as realizadas na Universidade de Rennes, na França, nos dizem que pessoas com anorexia ou transtorno dismórfico corporal têm percepção alterada da fome fisiológica, da saciedade, de como as emoções se expressam no próprio corpo.
  • Avaliação cognitiva (o que pensamos). A ideia de quem somos também é construída a partir de como nos vemos. Aqui, pensamentos e crenças têm grande poder na hora de construir uma imagem saudável e positiva de nós mesmos.

Quando nos desassociamos de nosso corpo e o rejeitamos, deixamos de entender como nos sentimos e nos desapegamos do bom gerenciamento de nossas emoções.

Mulher triste olhando no espelho com problemas de autoconsciência corporal
Todos nós podemos não gostar de uma certa parte do nosso corpo, mas não nos odiar por causa de nossa imagem corporal.

Quando a mente e o corpo não estão em harmonia

A autoconsciência corporal se instala em nosso cérebro na infância e pode se desgastar a qualquer momento. Porque se mente e corpo deixam de estar em harmonia, a origem está quase sempre numa terceira variável alheia, estranha e muito nociva: a nossa cultura. A imagem que temos de nós mesmos pode ser destruída pelas mensagens que recebemos do nosso ambiente.

A família costuma ser o primeiro cenário que inocula as crianças com narrativas negativas sobre seu esquema corporal. E essas primeiras mensagens vão do autoconceito à autoestima. E o que podemos dizer sobre moda, marketing publicitário e redes sociais? Nossos jovens se comparam diariamente com as imagens que recebem de seus aplicativos Tik Tok e Instagram.

As redes sociais são, neste momento, o principal inimigo da autoconsciência do corpo saudável nos jovens. Assim, o que acontece quando a mente e o corpo não estão em harmonia é altamente problemático e conhecido por todos. Mas mal enfrentado por boa parte da nossa sociedade.

Desapegar-nos do nosso corpo

Quando mente e corpo estão fora de sincronia, damos lugar a um tipo marcante de dissociação. O que acontece é que deixamos de ter o controle de nossas emoções, as reprimimos, não as compreendemos, permanecemos ancorados em sua valência negativa. Há apenas rejeição, crítica, ansiedade persistente e desprezo.

A falta de autoconsciência corporal promove a falta de autoconsciência emocional e, por sua vez, uma distorção do próprio Eu. O nosso corpo não é nosso, o renegamos, distanciamo-nos desse invólucro físico para ficarmos encalhados numa dimensão de desconforto permanente. E os efeitos são imensos.

O que fazer nessas circunstâncias? A responsabilidade é de todos. Vivemos em uma sociedade dominada pela tirania de uma beleza impossível, artificial e ditada pela autoexigência. O nosso corpo não deve ser um inimigo, faz parte do nosso ser e temos de reformular a nossa cultura para evitar que crianças de 9 e 10 anos sejam internadas com urgência em unidades de transtornos alimentares. Vamos pensar sobre isso.


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