Descartes e a certeza da autoconsciência

Até que ponto podemos confiar nas informações que vêm de nossos sentidos? Quais são os limites de nosso conhecimento? Para responder a essas perguntas, acompanharemos Descartes em sua busca pela certeza.
Descartes e a certeza da autoconsciência
Matias Rizzuto

Escrito e verificado por o filósofo Matias Rizzuto.

Última atualização: 07 junho, 2023

René Descartes (1596-1650) foi um proeminente cientista que também fez importantes contribuições para a filosofia. Para ele, os métodos filosóficos usados por seus contemporâneos estavam errados. Sua visão era oposta à daqueles que sustentavam que o conhecimento poderia ser obtido por meio dos sentidos. Dessa forma, ele tentou encontrar algum tipo de certeza que o ajudasse a avançar no caminho do conhecimento.

Para Descartes, todo conhecimento deve ser deduzido pela razão. É por isso que sua filosofia é chamada de “racionalismo”. Seu pensamento tenta transferir o método da matemática para a filosofia. Assim, partindo de verdades simples, mas seguras, procura construir um conhecimento sólido e inquestionável.

A dúvida como fundamento da certeza

Para cumprir sua missão, Descartes decide se isolar do mundo e questionar sistematicamente todas as crenças, opiniões e verdades que havia tomado como verdadeiras. Dessa forma, o filósofo se propõe a examinar por meio de uma “dúvida metódica” tudo o que sabíamos até aquele momento.

Descartes adverte que as informações que tomamos como certas muitas vezes chegam até nós por meio dos sentidos. No entanto, é fácil para os nossos sentidos nos enganar. Por exemplo, se introduzirmos um pedaço de pau na água, ele parece quebrar; mas o que acontece é que nossa visão é enganada pelo efeito causado pela luz através da água. Da mesma forma, podemos ver uma coluna ao longe e pensar que ela é redonda, mas assim que nos aproximamos, percebemos que na verdade ela era quadrada.

Descartes e a certeza da autoconsciência
Para Descartes, o conhecimento deve ser deduzido pela razão; daí sua perspectiva ser conhecida como racionalismo.

Os sentidos nos enganam

Essas considerações levam Descartes a pensar que , se os sentidos nos enganam, dificilmente poderemos confiar nas informações que nos chegam por meio deles. Embora também se possa pensar que há coisas em que dificilmente podemos ser enganados. Por exemplo, seria difícil para mim duvidar de que estou neste exato momento escrevendo este artigo.

Apesar disso, muitas vezes sonhamos com situações que parecem tão reais que acreditamos estar vivendo, mas ao acordar percebemos que não passaram de imaginação. Portanto, Descartes conclui que não podemos confiar nas informações que nossos sentidos nos fornecem.

“Descobri que nossos sentidos nos enganam de vez em quando e é sábio nunca confiar naqueles que nos enganaram nem uma vez.”

-René Descartes-

Um gênio do mal nos engana?

No entanto, existem conhecimentos que não fazem sentido duvidar, por exemplo, a matemática. Sempre que somarmos dois mais dois, obteremos quatro como resultado. No entanto, Descartes leva a dúvida ao extremo e se pergunta o que aconteceria se em vez de um deus houvesse um gênio do mal que nos induzisse ao erro toda vez que somássemos dois mais dois.

Este último argumento pode soar um tanto rebuscado, porém devemos entender que dado o contexto histórico em que viveu, ele não quis chamar a atenção da Inquisição. Admitir que Deus, que deveria ser pura bondade, nos engana intencionalmente poderia ser considerado heresia.

A única certeza é a autoconsciência

Pela dúvida metódica, Descartes é responsável por destruir toda possibilidade de conhecimento. Despojada já dos sentidos e das verdades matemáticas, onde poderia a certeza encontrar refúgio?

Então nosso intrépido filósofo percebe que, embora duvide de tudo, ainda existem processos mentais em jogo; portanto, ele não pode duvidar de que está pensando. É aqui que ele dá forma a uma de suas frases mais emblemáticas: cogito ergo sum, ou seja, “penso, logo existo”.

Podemos duvidar de tudo o que vemos, mesmo do que pensamos, mas não podemos duvidar de que estamos pensando ; e se estamos pensando é porque existimos. Por isso, nossa única certeza é a autoconsciência. Estamos conscientes de nós mesmos porque nosso intelecto pode perceber clara e distintamente esse fato. “Somos uma coisa pensante”, declara Descartes, uma res cogitans.

Alguns dos atributos dessa coisa ou substância pensante são sentir, querer, imaginar e saber. Para avançar no conhecimento, devemos analisar os conteúdos mentais que habitam o pensamento.

«Sou uma coisa que pensa, isto é, uma mente, uma alma, um intelecto, ou uma razão […] Sou, portanto, uma certa coisa e uma certa ciência existente».

-René Descartes-

Mente com um homem dentro
Nossa única certeza é o autoconhecimento

As ideias em Descartes

Descartes diferencia o conhecimento originado em nosso intelecto daqueles que vêm de nossos sentidos. Além disso, ele chama os conteúdos que aparecem em nossa mente de ideias, distinguindo pelo menos três tipos principais:

  • Idéias adventícias: são aquelas que vêm do exterior.
  • Idéias factícias: são aquelas produzidas por mim.
  • Ideias inatas: são aquelas que não vêm de fora ou são produzidas por mim.

Enquanto as ideias adventícias são as impressões sensíveis dos objetos do mundo externo, as factícias são aquelas que construímos com nossa imaginação a partir de outras ideias, por exemplo, a ideia de um centauro. No entanto, existem ideias em nossas mentes que não parecem vir de fora ou foram criadas por nós. Por exemplo, observe que as ideias de infinito e perfeição existem em nós.

Estamos sozinhos no mundo?

Ora, sendo seres limitados e finitos, como poderíamos nós mesmos ter criado as ideias de perfeição e infinitude? Se fôssemos seres perfeitos, não teríamos nenhum tipo de dúvida porque nada nos faltaria, tudo saberíamos. Tampouco podemos ter tais ideias por meio dos sentidos, pois não há nada no mundo perfeito e infinito. Mas de onde vêm essas ideias?

Aqui Descartes usará um argumento para provar a existência de Deus, que foi criticado por muitos filósofos posteriores. Descartes argumenta que essas idéias devem ter sido colocadas em nós por algum tipo de ser perfeito e infinito e ilimitado. Como a bondade faz parte da perfeição, um ser com tais características não pode nos enganar. Com isso, cai a hipótese do gênio do mal, agora há certeza para as verdades matemáticas.

A certeza do mundo sensível

Se aceitarmos a prova de Descartes, Deus não poderia ter nos criado de forma que sempre falhemos na tentativa de conhecer a verdade. Assim, o lógico seria que pudéssemos conhecer até certo ponto o mundo corpóreo. Descartes chamará essa realidade de res extensa, isto é, tudo o que tem extensão, que pode ser observado, medido ou pesado.

Agora, se sim, por que às vezes somos enganados por nossos sentidos, por que não conhecemos a verdade? Descartes argumenta que quando nossa vontade de saber é maior que nosso entendimento, então caímos no erro. Quando queremos saber algo, mas não temos clareza e distinção suficientes sobre isso, tendemos a ser enganados por falsas conclusões.

O argumento de Descartes é infalível?

Embora alguns conceitos de Descartes ajudem na reflexão, há fragilidades em torno de alguns de seus argumentos. É verdade que não podemos duvidar disso quando pensamos que existimos, mas isso é suficiente para afirmar que existe uma substância pensante? Alguns filósofos como Hume sustentam que a ideia do eu é uma ilusão e que nossa existência é um fluxo de eventos que não obedecem a nenhuma unidade.

Por outro lado, a demonstração da existência de Deus tem sido fortemente criticada. O fato de que as idéias de infinito e perfeição sejam possuídas dentro de si mesmo não prova necessariamente a existência de um ser perfeito e infinito. Muitos sustentam que não há clareza e distinção suficientes para considerar que essas ideias são inatas. Além disso, poderíamos facilmente deduzi-los por meio da negação, contrastando-os com as ideias de finitude e imperfeição.

Mas além das críticas ao pensamento de Descartes, é impossível negar que suas ideias tiveram um grande impacto na filosofia posterior. A dúvida metódica pode ser uma ferramenta que nos ajuda a desafiar nossas crenças e perspectivas, a fim de expandir nosso conhecimento e compreensão do mundo. E o que você acha? O argumento de Descartes o convence?


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  • Descartes, R. (1999). Meditaciones metafísicas – Las pasiones del alma, Ediciones Folio, Villatuerta.
  • Pereira Gandarillas, F. (2014). Hume y la ficcion de la identidad personal. Ideas y valores  63 (154), 191-213.

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