Era uma Vez em... Hollywood: O conto de Quentin Tarantino
Tarantino conseguiu outra vez. No mundo da pressa e do imediatismo, ele conseguiu reunir uma infinidade de pessoas em uma sala durante três horas, sem olhar o celular e sem falar, somente pelo deleite do cinema. É exatamente isso que ele nos proporcionou, CINEMA com letras maiúsculas, com o amor puro pela sétima arte, as referências e tudo que esse diretor adora. Era uma Vez em… Hollywood é filme mais recente do cineasta que está há décadas gravando sua identidade no imaginário coletivo.
Quando um artista, seja do tipo que for, faz o que verdadeiramente sente, é fácil notar isso. Agora, Tarantino tem em seu poder um público que espera ansioso pelo seu próximo longa, além de dinheiro para pagar pelas suas produções e lhe permitir fazer o que realmente deseja.
Independentemente de esta escolha ser correta ou estar na moda, Quentin Tarantino se recria em suas influências, mergulha em seus fetiches e nos proporciona uma forma diferente de reescrever a história, reinterpretando tudo que já foi, mas que poderia ser, dançando com o mais absoluto entretenimento.
Era uma Vez em… Hollywood demonstra que nem tudo foi dito, que nem todo cinema comercial é igual e que ainda há pessoas dispostas a se sentar durante horas e simplesmente se deixar levar.
Parece que o filme não foi feito para ninguém, e sim para ele mesmo. Aí reside a chave do seu sucesso, dessa festa na qual, diferentemente de seus predecessores, o molho de tomate precisa esperar até o final.
A intertextualidade como chave
Tarantino aprendeu cinema vendo cinema, com as joias, as esquecidas e rejeitadas da sétima arte. É isso que ele quer transmitir ao seu público, porque até no obscuro pode haver arte.
Desde o início da sua carreira, deixou claro que coloca em seu cinema tudo que gosta, desde a música até o bombardeio de referências como cinéfilo, passando pelos seus fetiches.
Podemos aprender cinema vendo um filme de Tarantino, podemos pesquisar entre os spaghetti western que estão fora de moda e mergulhar no kung fu para acabar descobrindo verdadeiros diamantes que o cinema mais comercial quis ocultar dos espectadores.
A arte vai muito além da moda, das imposições e da política; a arte deve ser valorizada simplesmente como arte. Se um diretor que apreciamos propõe um filme (de forma direta ou indireta), talvez terminemos por dar-lhe uma oportunidade.
Quando vimos o trailer de Era uma Vez em… Hollywood, o desconcerto reinou. Mesmo sabendo que gostamos do cineasta, mesmo conhecendo a sua filmografia, não sabíamos muito bem o que esperar.
Será que ele iria falar de Charles Manson e dos assassinatos perpetrados pela “família”? Seria uma história de ficção? Uma homenagem às velhas glórias do western norte-americano que fugiram para a Europa em busca de um papel melhor? Sim e não, e de tudo um pouco.
Era uma Vez em… Hollywood é um vai e vem de referências; é quase impossível captar todas elas, e é ainda mais interessante sair do cinema e comentar com os amigos quais elementos intertextuais cada um identificou. Todos crescemos em uma cultura herdada e estamos mais ou menos predispostos a captar determinadas mensagens.
Quentin Tarantino mostra diante dos nossos olhos tudo que ele gosta, tendo ou não sentido, e constrói uma história que poderia muito bem ter acontecido ou não.
Seguindo com esta ideia das referências, o próprio título evoca um cineasta profundamente admirado por Tarantino, pois ele nunca escondeu seu amor pelo cinema de Sergio Leone.
Leone escreveu dois “contos” com títulos similares ao que comentamos hoje: por um lado, o que foi seu último spaghetti western, Era uma Vez no Oeste; por outro, aquela que iria ser a grande experiência americana do italiano, Era uma vez na América, o filme extenso que os sonhados Estados Unidos não conseguiam apreciar.
O elemento nostálgico se torna presente desde as primeiras sequências. A Hollywood idealizada acaba por se transformar em um ambiente inóspito em que os atores precisam se conformar com o que vem em uma determinada idade. Uma fábula grotesca, inverossímil e real ao mesmo tempo, que acaba por mostrar o rosto mais amargo da indústria cinematográfica.
Tudo isso ocorre em meio a um elemento conhecido e trágico: o assassinato de Sharon Tate, que é apresentada como uma jovem cheia de vida que busca se deleitar com o seu público enquanto observa risonha um de seus filmes.
Nós, os espectadores, conhecemos seu trágico destino e, inevitavelmente, nos compadecemos e sentimos empatia pelo seu olhar, mas também pelo de um ator que poderia ser um Clint Eastwood, que sofreu as consequências de sua maturidade, e de uma indústria que se empenhava em rotulá-lo sem lhe dar a oportunidade de brilhar.
A nostalgia emana de cada canto da tela, a lembrança de uma época gloriosa, mas atormentada pela dureza, se mistura com o devaneio de Tarantino, com a sua ideia de “contar de outra maneira o que poderia ter acontecido”. Também não falta ironia, nem a violência coreográfica característica do seu cinema; uma violência patética, bela e entretida em partes iguais.
Em alguns momentos, parece que estamos vendo dois filmes de maneira simultânea, duas verdades ou duas mentiras que acabam por se conjugar em um final surpreendente, risível e, ao mesmo tempo, assustador.
Era uma Vez em… Hollywood, o conto de Tarantino
ALERTA: A partir deste momento, o artigo pode conter spoilers
Tarantino nos oferece um conto da Hollywood do passado, de um lugar em que os sonhos se tornam realidade, mas também desaparecem como fumaça com facilidade. A história de personagens reais se mistura com a dos fictícios, embora também pudessem ter pertencido à realidade.
De fato, Era uma Vez em… Hollywood brinca com os nossos conhecimentos da época, nos mergulha em ruas inundadas por veículos do passado e nos apresenta a jovens da “família” de Charles Manson através de uma canção facilmente reconhecível, I’ll never say never to always.
No entanto, realmente esperamos ver o trágico final de Sharon Tate em um filme de Tarantino? Não, definitivamente não. Esse não é o tipo de violência que o diretor aprecia, não é a violência estética, entretida e amenizada pela música com a qual estamos acostumados.
Embora Sharon Tate não seja um dos personagens mais fundamentais do longa, a verdade é que o cineasta brinca com o blocking e a composição para que o nosso olhar se dirija, em todo momento, até ela.
Por exemplo, ele a veste de amarelo em uma festa lotada, sua câmera se move de maneira que a nossa atenção se centre na jovem, nos obriga a sentir empatia por ela e a conhecê-la sem muitas palavras.
Conhecemos Sharon através da opinião de outros personagens e da sua forma de interagir com o entorno. Será que ele realmente iria nos apresentar a uma personagem de forma tão terna para nos mostrar o mais terrível dos finais? É claro que não, e se prestarmos muita atenção, no começo do filme Tarantino já nos revela o seu final.
Graças a uma cena que lembra diretamente um de seus filmes anteriores, Bastardos Inglórios, os espectadores podem, sem muita dificuldade, antecipar o final. O que ele fez com Bastardos Inglórios? Reescreveu a história, vingou um episódio obscuro do passado e acabou assassinando o próprio Adolf Hitler.
Por isso, esta referência do começo nos conecta diretamente com o que vamos ver em Era uma Vez em… Hollywood. Não, não vamos ver uma violência crua, trágica e dolorosa, e sim uma violência divertida, um baile de sangue, chamas e ação.
Histórias que, aparentemente, são distantes, mas se conectam em um final eclético. Detalhes minuciosamente pensados e brincadeiras constantes, tudo é possível no cinema de Tarantino, e Era uma Vez em… Hollywood se transforma, assim, em uma homenagem ao cinema, à sétima arte, e uma demonstração da sua habilidade de contar histórias, satirizar a vida, rir de tudo e, especialmente, se divertir.
O molho de tomate se faz esperar, mas se apresenta como uma catarse, como uma liberação para a nossa consciência, como um “é assim que as coisas deveriam ter acontecido”.