A filosofia dos transtornos mentais

O que é um transtorno mental? Como é feito o diagnóstico? A filosofia dos transtornos mentais se encarrega de responder a essas e outras perguntas que estão na base da psicologia e da psiquiatria, cujo estudo tem consequências muito importantes para a realidade de uma consulta.
A filosofia dos transtornos mentais
Cristina Roda Rivera

Escrito e verificado por a psicóloga Cristina Roda Rivera.

Última atualização: 22 dezembro, 2022

A filosofia dos transtornos mentais é um campo de estudo interdisciplinar. Combina pontos de vista e métodos da filosofia, da psicologia, da neurociência e da ética para analisar a doença mental.

Os filósofos dos transtornos mentais se preocupam em examinar os problemas ontológicos, epistemológicos e normativos. Todos eles surgem das diversas concepções de doença mental. Dentre as perguntas centrais da filosofia da doença mental, aparece uma questão: se o conceito de uma doença mental pode receber um especificação cientificamente adequada e livre de valor subjetivo.

Questiona-se se os transtornos mentais devem ser entendidos como uma forma de disfunção mental. A filosofia dos transtornos mentais também analisa se as doenças da psique se identificam melhor como entidades mentais diferentes, com critérios claros de inclusão e exclusão, ou como pontos ao longo de um contínuo entre o normal e o doente.

O que é um transtorno mental? Como é feito o diagnóstico?

Filosofia dos transtornos mentais: a crítica ao diagnóstico

Os filósofos críticos do conceito de transtorno mental argumentam que não é possível atribuir um valor neutro para as doenças mentais. Argumentam que as categorias de transtornos impõem normas e relações de poder preexistentes.

Surgem, então perguntas sobre a relação entre o papel que os valores têm dentro do conceito de um transtorno mental, e como esses valores se relacionam com os conceitos de doença em geral.

Os filósofos que se consideram parte do movimento da neurodiversidade afirmam que nosso conceito de doença mental deveria ser revisado. Esse conceito deveria refletir as diferentes formas de cognição que podemos colocar em prática sem estigmatizar os indivíduos que não estão estatisticamente na média.

O problema do diagnóstico

Também há problemas epistemológicos relacionados à conexão entre a doença mental e o diagnóstico. Historicamente, o tema central se focava em como as nosologias (ou esquemas de classificação) dos transtornos mentais, especialmente o DSM, relacionam as disfunções mentais com sintomas observáveis.

A disfunção mental, no sistema DSM, é identificada mediante a presença ou ausência de um conjunto de sintomas de uma lista que deve ser verificada. Os críticos do uso de sintomas de comportamento para diagnosticar transtornos mentais argumentam que os sintomas não inúteis sem uma concepção teórica adequada do que significa um mecanismo mental disfuncional.

Um sistema de diagnóstico deve ser capaz de distinguir uma pessoa com uma doença mental genuína e uma pessoa que sofre de um problema naquele momento da vida. Os críticos argumentam que o DSM, como está constituído hoje, não pode fazer isso.

O conceito de transtorno mental é confiável?

Há perguntas relacionadas que surgem nesse contexto sobre a natureza e o papel do julgamento nas doenças mentais. A primeira tem a ver com se a doença mental é um conceito de valor neutro. As nosologias de problemas mentais tentam criar definições de valor neutro.

No mundo ideal, supõe-se que os conceitos selecionados por manuais, como o DSM, reflitam uma realidade humana universal subjacente. Os transtornos mentais contidos neles, com uma pequena exceção, não estão destinados a representar julgamentos de valor normativo culturalmente relativos ao domínio da mente.

Críticas ao conceito de transtorno mental do campo da filosofia

Michel Foucault foi um dos primeiros críticos das doenças mentais e das instituições de saúde mental. Foucault argumentou que os asilos psiquiátricos surgiram historicamente a partir da aplicação de modelos de racionalidade que privilegiavam os indivíduos que estavam no poder.

Esse modelo serviu para excluir os muitos membros da sociedade do círculo marcado pelo pensamento racional. Os asilos funcionavam como um lugar para que a sociedade pudesse isolar essas pessoas indesejadas e reforçar as relações de poder preexistentes.

São artefatos sociais que servem aos mesmos objetivos socioculturais que nossas construções de raça, gênero, classe social e orientação sexual. Assim, as doenças mentais tratariam de manter e expandir o poder de certos indivíduos e instituições, e preservar a ordem social como definida por quem está no poder.

Michel Foucault

Os construtivistas e o conceito de transtorno mental

Os construtivistas podem ocupar uma variedade de posições na hora de falar sobre a saúde mental, já que a relação entre o conceito de construção social e o de doença mental assume uma variedade de respostas. Em um nível menos radical, os construtivistas podem afirmar que as culturas impõem modelos de agir ideais que são usados para etiquetar conjuntos de comportamentos humanos.

As síndromes de comportamento, a partir desse ponto de vista, podem ser um conceito presente de forma diferente em todas as culturas. Cada cultura desenvolve uma teoria de comportamento ideal que faz com faz com que alguns desses conjuntos de ações, sentimentos e comportamentos se tornem doenças. Enquanto isso, outras culturas podem agrupar síndromes de maneiras diferentes segundo diferentes valores.

O conjunto de comportamentos que chamamos de depressivos só existe porque os médicos agruparam tais ações, por qualquer número de razões que seja. A única forma de explicar por que um conjunto de comportamentos, sentimentos e pensamentos é agrupado em uma síndrome é dizer que os médicos criaram esse agrupamento.

Para o conjunto de comportamentos característicos de um ataque cardíaco, temos uma história causal facilmente disponível que unifica os atos. No entanto, as doenças mentais carecem de uma explicação independente do clínico para seu agrupamento.

Desse ponto de vista, as síndromes são similares ao que Ian Hacking chamou de tipos interativos. Os tipos naturais apresentam agrupamentos independentes dos valores do mundo. No entanto, os tipos interativos fazem com que as pessoas se percebam de acordo com uma visão que foi criada e estabelecida, chegando a criar sentimentos e emoções para se ajustar a esse tipo.

Exemplos interativos nas doenças mentais

É necessário pensar no transtorno de personalidade múltipla (agora transtorno dissociativo de identidade) como um tipo interativo. Ou seja, o transtorno de personalidade múltipla não é um fato básico sobre a neurologia humana que um neurocientista pode descobrir.

Um vez que for identificado o conceito do transtorno de personalidade múltipla, muitas pessoas serão etiquetadas. Sob essa condição médica, serão diagnosticados indivíduos sem que nenhuma causa subjacente no cérebro possa provar o diagnóstico.

Essa distinção oculta explicações alternativas da doença mental que permitem visões intermediárias, menos essencialistas e inclusive pluralistas dentro da filosofia.

Em conclusão, podemos dizer que a filosofia dos transtornos mentais é uma perspectiva que ensina para a psicologia muitos aspectos que deveriam fazer parte da sua forma de proceder durante o atendimento de uma pessoa fora do circuito médico e dos rótulos iatrogênicos.


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