Green Book: quando se normaliza o racismo
And the Oscar goes to… no final, o Oscar de melhor filme foi para Green Book. Um prêmio que muitos já haviam antecipado e que parecia se aproximar um pouco mais quando Roma levou a estatueta de melhor filme estrangeiro. Nem tudo iria para Cuarón, era preciso haver distribuição e, no final, Green Book foi o vencedor na categoria principal.
Um resultado que parece não ter agradado a muitos que consideram que, provavelmente, este prêmio seja um pouco demais. No entanto, não podemos dizer que se trata de um filme ruim ou que não atinge seu objetivo.
Green Book é politicamente correto e nos traz algo que vimos uma infinidade de vezes no cinema. Não, Green Book não trouxe nada de novo, mas soube como contá-lo e encantar os espectadores.
Todos nós gostamos de ver histórias que nos deixam pensando, que o filme brinque com a gente. Independentemente dos nossos gostos, se preferimos mais fantasia ou drama realista, queremos que o filme nos surpreenda. Mas devemos reconhecer que mesmo o espectador mais inconformista do mundo, de vez em quando, aprecia uma comédia leve ou uma história que o entretenha durante uma ou duas horas. O cinema é arte, mas não se esqueça de que também é consumo e, é claro, entretenimento.
Green Book nos proporciona um momento agradável, nos mostra a crueldade do racismo, mas suavizado pelos valores da amizade. A dupla formada por Viggo Mortensen e Mahershala Ali, este último vencedor do Oscar por sua interpretação de Don Shirley, funciona perfeitamente e nos brinda um feel-good movie que nos fará sorrir diversas vezes.
É claro que, se o que queremos é dar início a uma reflexão profunda, Green Book não é uma boa opção; mas é um daqueles filmes que você veria em um dia cinzento e tedioso para descontrair ou suavizar um pouco a sua vida.
Green Book: dois personagens muito humanos
Green Book segue uma história real como ponto de partida: a relação entre Tony Lip e Don Shirley. O primeiro é um residente ítalo-americano do Bronx; de origem humilde, vive com a esposa e os dois filhos. Tony perde seu emprego e mergulha em uma nova aventura, tornando-se o motorista de Don Shirley, um músico negro que ele acompanhará em sua próxima turnê.
Shirley é um homem que ama a alta cultura. Sua condição de músico reconhecido lhe confere uma certa diferença em relação ao resto da comunidade negra; no entanto, ele também não se encaixa entre os brancos. O racismo está tão normalizado que nem mesmo seu status poderá salvá-lo. Tony, por outro lado, é rude, mas um bom conhecedor de outra cultura: a popular.
Os conflitos entre ambos não tardarão em chegar, seja por seus preconceitos ou porque nenhum deles se esforça para sair um pouco do molde em que vivem. Esses dois personagens respondem perfeitamente a tipos, não são personagens novos, pois os vemos em outros filmes. Mas longe de serem chatos e entediantes, eles ganham vida graças ao bom trabalho dos atores, tornando-se personagens muito humanos.
O negro é rico e educado, enquanto o branco passa por alguns problemas financeiros e age com ignorância. Embora essa ignorância também seja relativa, Tony sabe de coisas que Don desconhece e vice-versa. Um se desenvolve perfeitamente em ambientes cultos e elitistas, mas o outro sabe como se virar nas rua e na vida cotidiana.
Os conflitos não tardarão a chegar para Shirley e ocorrerão, inclusive, em situações em que ele deveria ser “o rei”. O filme é muito claro sobre a mensagem que pretende transmitir: não ao racismo. Com uma boa trilha sonora e quilômetros de estradas e hotéis que segregam por condições raciais, Green Book constrói uma história com moral, que transmite boas vibrações e bons sentimentos.
Don e Tony se complementarão perfeitamente, superarão as diferentes adversidades e a comédia com um toque dramático se encarregará do resto. Sim, tudo é muito previsível, mas Green Book não procura surpreender ninguém.
Os dois personagens são muito interessantes e não há dúvida sobre o valor de seus intérpretes. Graças a eles, o que temos é uma história em que a humanidade tem mais peso do que os preconceitos. Ambos têm muito a aprender um com o outro, Shirley deve deixar de lado o esnobismo que utiliza como máscara, enquanto Tony aprenderá uma boa dose de boas maneiras e se afastará do preconceito.
O racismo normalizado: o grande inimigo
O que acontece quando o racismo é normalizado e faz parte das próprias instituições? Com um sorriso e sem saber que estão sendo racistas, as pessoas o adotarão como um modo de vida, como parte de seus valores e sua cultura.
Green Book nos mostra a face mais normalizada do racismo nos anos 60 nos Estados Unidos. Ninguém questionava por que os negros deveriam ficar em hotéis diferentes, por que não podiam utilizar o mesmo banheiro que uma pessoa branca ou por que não podiam frequentar determinados restaurantes.
E se o negro em questão for importante? E se tiver mais poder do que qualquer um dos brancos ao seu redor? Então, com um sorriso alegre e amigável, eles o convidarão a demonstrar suas habilidades e, quando chegar a hora, eles gentilmente o afastarão. Porque um homem negro nunca será branco e, se ele se aproxima, deve demonstrar constantemente seu talento.
Don Shirley é pago para tocar em eventos de pessoas ricas, educadas e requintadas, capazes de admirar seu talento, mas é melhor que não tente se misturar com eles para além da exposição.
É a hipocrisia dos mais cultos, daqueles que afirmam abraçar as diferenças, mas sabem que há um limite que jamais poderão atravessar. São aquelas pessoas sábias que criticam o racismo, o machismo ou a homofobia, mas que também são elitistas e não deixarão que sua elite seja ameaçada. E farão isso inconscientemente, porque é considerado algo normal e completamente inofensivo. A alta cultura, infelizmente, sempre foi um tanto elitista.
Esse elitismo contagiou Don Shirley em seu desejo de se destacar, de não ser mais negro; embora, no fundo, ele seja consciente da sua realidade. Por outro lado, Tony Lip, com sua moralidade duvidosa, também não se encaixa nessa elite, apesar de ser branco. Ele também carrega seu rótulo, o de ítalo-americano, descendente de imigrantes e, portanto, da classe trabalhadora. Apesar de sua aparente falta de cultura, ele também pode desfrutar da música e, inclusive, de boas palavras.
Todo este discurso é refletido em Green Book e, ao mesmo tempo, podemos aplicá-lo à nossa própria realidade. É claro que essa segregação já não ocorre do mesmo modo atualmente, mas os rastros do racismo institucionalizado não desaparecem facilmente.
Pensemos, por um momento, nas nossas universidades, existe realmente diversidade? Certamente, bem pouco. Não vivemos nos Estados Unidos dos anos 60, mas ainda vivemos em um mundo que exclui por origem, gênero, orientação sexual, etc.
Green Book não coloca o dedo na ferida, não nos mostra a imagem mais crua do racismo, mas sim a mais normalizada, silenciosa e, talvez, a mais perigosa. Portanto, embora não ofereça nada de novo, nos transmite uma mensagem que, infelizmente, é atemporal. Não é mais o “não ao racismo”, é o não à discriminação de qualquer tipo.
Se mereceu o Oscar de melhor filme ou não é outro assunto. Também não podemos dizer que é um filme essencial e absolutamente necessário, mas atinge o seu objetivo: transmitir boas vibrações e nos fazer sorrir.
“Você nunca ganha com violência. Você só ganha quando mantém a sua dignidade”.
–Green Book–