O Corcunda de Notre Dame: a história mais obscura da Disney

O Corcunda de Notre Dame: a história mais obscura da Disney
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 07 outubro, 2022

O Corcunda de Notre Dame (1996), apesar de ser um filme infantil, tem um enredo sombrio e difícil de digerir. Não me refiro à escuridão alegre, como a de O Estranho Mundo de Jack, nem tampouco à escuridão aterradora apresentada em O Caldeirão Mágico, um dos grandes conhecidos da Disney. Não, a escuridão de O Corcunda de Notre Dame não tem nada a ver com isso; é uma escuridão diferente, real e crua. Talvez, por esse mesmo motivo, muitas crianças dos anos 90 não souberam apreciá-lo.

O Corcunda de Notre Dame não é um filme desconhecido, pois tem boa publicidade, teve boas críticas e boas recomendações. Entretanto, quando estreou muitos de nós éramos pequenos para entendê-lo e, talvez, seja esse o motivo de o filme não estar entre os Top 10 da Disney.

Por essa razão, não teve grande acolhimento por parte do público infantil e foi colocado no baú do esquecimento. Por outro lado, apesar de que não serem poucos os filmes da Disney que escondem um enredo confuso e um contexto digno de análise, O Corcunda de Notre Dame se afasta bastante do estereótipo da Disney e nos mostra uma história carregada de crítica à sociedade e ao poder, especialmente ao da Igreja.

O filme é baseado no livro Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, publicado em 1831. Este fato também gerou rejeição por parte dos seguidores do escritor francês, pois esperavam encontrar uma obra ainda mais sombria e fiel à original. Porém, como era de se esperar, a Disney adocicou uma obra que de doce tem pouco, para que as crianças não saíssem aterrorizadas do cinema. No entanto, mesmo com esse esforço, o filme foi bem horripilante para muitas delas.

A adaptação da novela de Hugo pela Disney não é a única, pois existem outras mais cruas e destinadas ao público adulto, como A Cigana Esmeralda (1936) ou O Corcunda de Notre Dame (1956).  Observando-a à distância e com uma perspectiva adulta, percebemos que estamos diante de um grande filme de animação com cenários fascinantes e uma mensagem que nos surpreende e conquista.

Filme 'O Corcunda de Notre Dame'

O eclesiástico em O Corcunda de Notre Dame

A principal diferença em relação à obra original de Victor Hugo é a do personagem do juiz Frollo. Na versão original,  Frollo é o arquidiácono de Notre Dame, enquanto na versão da Disney ele é um juiz, algo totalmente compreensível, considerando que o filme está direcionado a um público infantil.

A imagem da Igreja fica bastante desprestigiada no filme porque, apesar de nos apresentar Frollo como um juiz, o personagem está muito vinculado à catedral, possui fortes crenças religiosas e, em ocasiões, seu figurino se aproxima muito do eclesiástico.

Frollo deveria ser um homem da lei, um personagem respeitável e justo, mas é o contrário. Desde o início vemos sua maldade, sua arrogância e seu desprezo pelos diferentes. Frollo odeia os ciganos, odeia todos aqueles que não são como ele; mas a vida lhe pregará uma peça e ele acabará experimentando emoções que jamais pensou que poderia sentir.

Frollo começa a ficar obcecado com a cigana Esmeralda; seus sentimentos com relação a ela não são saudáveis de forma alguma. Esmeralda se converte em uma espécie de objeto muito apreciado e tentador. Ao mesmo tempo, surge em Frollo um desejo doente que o levará a questionar a sua fé. Ele considera que o seu desejo com relação à Esmeralda é uma espécie de prova de Deus e que ele deve evitar o pecado; mas esse desejo é tão obsessivo que ele chegará a desejar que ela seja de sua propriedade e, se não for, deverá morrer.

Toda essa obsessão irracional de Frollo culminará em um dos momentos musicais mais perturbadores de todo o universo da Disney. Uma canção onde as conotações são evidentes desde o início: coros eclesiásticos, um crucifixo gigante, o figurino do Frollo, etc. Tudo isso, visto de uma perspectiva adulta, nos faz pensar que, talvez, Frollo não seja simplesmente um juiz, mas que está vinculado à Igreja.

Esse momento musical parece crucial para nos aprofundarmos um pouco mais no personagem; não só estamos diante de um juiz cruel e impiedoso que impõe a sua lei condenando um grande número de inocentes, mas diante de alguém que esconde algo mais. Frollo é um personagem realmente obscuro e incômodo; esse desejo irracional e obsessivo com relação à Esmeralda é quase mais aterrador que qualquer outra coisa no filme e, sem dúvida, penso que foi um risco, considerando tudo que a cena envolve. Conhecemos um vilão que realmente dá medo; por trás dessa imagem de puritano e senhor da lei, se esconde um homem de moral muito duvidosa.

A obra de Victor Hugo não mostra compaixão, é impiedosa. Por outro lado, O Corcunda de Notre Dame  é uma versão adocicada, mas digerível para o público em geral e, certamente, menos polêmica. No entanto, através do personagem de Frollo e, especialmente, da cena musical, vemos o que talvez seja um rastro da obra original, uma marca dessa dura crítica à Igreja e ao seu indiscutível poder.

Filme 'O Corcunda de Notre Dame'

O diferente em O Corcunda de Notre Dame

Além da crítica à sociedade e à Igreja, O Corcunda de Notre Dame é um chamado às diferenças, à aceitação. A bondade é algo que não está ligado à imagem; assim, temos um juiz cruel e um personagem inocente e de bom coração cuja imagem é desagradável para a maioria das pessoas. Quasimodo não pode ser aceito pela sociedade devido à sua aparência; por causa disso, o único dia em que se atreve a sair de Notre Dame é o “Festival dos Tolos”, uma espécie de carnaval no qual o grotesco é celebrado.

Quasimodo causa fascínio diante do público pela sua “fantasia”, mas ao descobrirem que não se trata de uma fantasia, e sim de seu rosto, ele é taxado de mostro. Somente um personagem mostrará compaixão por ele: Esmeralda, a jovem cigana que, por sua procedência, é marginalizada e perseguida da mesma forma que Quasimodo. Esmeralda é uma guerreira; é a única que se atreve a enfrentar o juiz Frollo e a lutar por justiça e igualdade para todos.

O próprio Quasimodo, devido à sua reclusão, classifica a si mesmo como monstro. Frollo criou nele uma grande insegurança. Ao não ter contato com a sociedade, Quasimodo estabeleceu uma amizade com as gárgulas da catedral, que seriam como uma espécie de consciência. Esmeralda, juntamente com as gárgulas, é quem consegue fazer com que ele abra os olhos e veja a realidade da forma como ela é. Também tem um papel importante o capitão Febo – um soldado que dá as costas ao juiz Frollo e se une à luta pela igualdade.

Quem é o verdadeiro monstro em Notre Dame? O filme nos mostra a verdadeira natureza do monstro, um monstro camuflado que caminha entre nós dia após dia e que tem o respeito da sociedade. Finalmente, O Corcunda de Notre Dame é um filme que deve ser resgatado e cujo enredo é mais complexo e tenebroso que a maioria dos filmes infantis. No entanto, ao mesmo tempo, está cheio de valores profundos que o convertem em uma apologia à justiça e à igualdade.


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