O índice Quetelec: uma estatística usada para ganhar dinheiro

O índice Quetelec, mais tarde renomeado como IMC, rendeu muito dinheiro a várias empresas. Mas o que está por trás dele?
O índice Quetelec: uma estatística usada para ganhar dinheiro
Cristina Roda Rivera

Escrito e verificado por a psicóloga Cristina Roda Rivera.

Última atualização: 27 janeiro, 2023

O índice Quetelec é uma referência obsoleta. Uma medida de “saúde” errônea que nunca nunca teve a intenção de ganhar essa conotação.

Quando queremos avaliar o nosso peso ou monitorar a eficácia de uma dieta, geralmente usamos o índice de massa corporal (IMC). Muitas vezes apresentado como uma ferramenta médica, o IMC é na verdade apenas uma entre muitas formas de “medir e classificar o corpo humano” (antropometria), mas certamente não é a mais eficaz de todas.

Muitos profissionais da saúde questionam a utilidade desse índice atualmente, pois ele não é tão universal e mesmo a longo prazo pode ser mais prejudicial do que benéfico. Além de se basear em uma amostra pouco representativa, apresenta profundas falhas metodológicas.

Então, ficamos presos em uma medida errada do nosso corpo por mais de um século? Que implicações para a nossa saúde física e mental isso pode ter?

O Índice Quetelec

Embora o IMC seja usado hoje para avaliar o estado de saúde e o risco de doença em uma população, seu criador não pretendia medir a saúde, muito menos usar esse índice em uma escala individual.

Em 1832, quando Adolph Quetelet (astrônomo e estatístico) desenvolveu o índice de Quetelec, ele o fez para definir as características de um “humano normal”. O objetivo não era medir a saúde ou a obesidade; seu índice estava relacionado a padrões dentro de uma população.

Adolph Quetelet desenvolveu seu método usando exclusivamente os dados de uma população masculina e caucasiana. Portanto, fica claro que desde o início esse índice continha uma metodologia científica questionável.

Apesar de seus vieses e limites, a fórmula foi bem sucedida, dando origem ao IMC que conhecemos hoje. Variáveis diferentes, nomes diferentes, objetivos diferentes, mas a mesma abordagem.

Mulher se pesando.
Quetelet nunca pretendeu que seu índice fosse usado para medir a saúde de uma pessoa.

Uma referência desatualizada, usada pelas empresas de seguro para ganhar mais dinheiro

No início do século 20, nos Estados Unidos, as empresas de seguro americanas buscavam uma forma simples e rápida de ganhar mais dinheiro. A partir dos poucos dados coletados dos formulários de assinatura, eles notaram uma maior taxa de mortalidade em homens que estavam com “sobrepeso“.

Durante décadas, os médicos não chegaram a um acordo sobre um índice, alguns dividiam o peso pela altura, outros o peso pela altura ao cubo. Em 1972, finalmente, um professor de fisiologia que pesquisava a obesidade, Ancel Keys, publicou sob o título Indices of Relative Weight and Obesity (Índices de Peso Relativo e Obesidade) os resultados de um estudo no qual haviam sido analisados mais de 7.400 homens em cinco países diferentes.

Keys passou por todas as diferentes equações e foi a fórmula de Quetelet (peso dividido pela altura ao quadrado) que acabou sendo a melhor para “detectar” o excesso de peso. Assim, Keys a renomeou como “índice de massa corporal”.

Um bom negócio, mas uma sociedade com a saúde pior

Ao mesmo tempo, nasceu a cultura popular da dieta para emagrecer, e as pessoas começaram a buscar diferentes fórmulas para atingir esse objetivo. Este (re)nascimento do IMC e da cultura slim/fit não teve os efeitos esperados. Muitas pessoas faziam dieta, mas isso não significava que elas tinham melhores hábitos ou uma saúde melhor.

Portanto, esse não tem sido um apoio para a nossa saúde física. De fato, nos últimos 50 anos, a utilização desse índice contribuiu para o aumento das doenças metabólicas e a construção de uma sociedade gordofóbica, com o surgimento de muitos transtornos alimentares e todas as mortes a eles associadas.

O IMC tem sido amplamente reconhecido como uma medida problemática por várias razões:

  • Uma origem controversa: como já dissemos, o IMC foi desenvolvido por um astrônomo e estatístico (e não por um pesquisador de saúde ou profissional médico), que estudou grupos de homens de origens muito específicas de populações não diversas para analisar seu estado de saúde geral.
  • Peso ou IMC é a mesma coisa: o IMC está diretamente relacionado ao peso e como a altura não muda em um adulto, apenas o peso muda o IMC. Portanto, rastrear seu peso com quilogramas ou com o seu IMC é exatamente o mesmo.
  • Etnocentrismo: O IMC é baseado em dados de altura e peso principalmente de europeus brancos de classe média alta, o que significa que não é uma amostra representativa da população geral e não leva em consideração as diferenças no tamanho médio do corpo em outros grupos étnicos.
  • Idade, sexo e composição corporal: o IMC não leva em consideração a composição muscular e a gordura corporal. Uma pessoa musculosa será considerada obesa (porque o músculo pesa mais que a gordura para o mesmo volume) e ainda assim sua figura será mais magra e seu risco de complicações metabólicas menor.
  • Erro de classificação: as diferenças entre as classificações do IMC (peso normal, sobrepeso, obesidade etc.) são arbitrárias. Elas não são baseadas em nenhum dado científico, mas sim definidas por um punhado de pessoas com uma ideia do que deveria ser um peso “normal”.
  • O IMC não é saúde: este índice pressupõe que conhecemos os comportamentos alimentares e o estado de saúde de uma pessoa com base apenas em sua altura e peso.

Uma referência obsoleta que devemos deixar de usar

Rotular as pessoas com um alto IMC como “com sobrepeso” ou “obesa” leva à discriminação, vergonha e culpa. Isso não motiva as pessoas a tomarem melhores decisões de vida e não faz nada para ajudá-las a sair da espiral do excesso de peso, se isso for necessário além da mera estética.

As autoridades públicas, a população em geral e os profissionais de saúde têm muito trabalho substantivo a fazer para parar de rotular as pessoas e julgar a saúde dos outros com base em dados limitados ou na crença popular.

O IMC oferece uma falsa ideia de saúde: as suposições feitas sobre pessoas em diferentes categorias são, na verdade, cientificamente imprecisas.

Mulher triste olhando no espelho.
O IMC tem sido usado para propagar preconceito e discriminação.

A confusão na saúde das pessoas

Um estudo recente em larga escala descobriu que quase metade das pessoas classificadas com “sobrepeso” e um terço das pessoas classificadas como “obesas” são metabolicamente saudáveis, o que significa que elas têm níveis completamente normais de pressão arterial, colesterol e açúcar no sangue.

Em contraste, quase um terço das pessoas na categoria “peso normal” apresentaram doenças metabólicas. O que emerge deste estudo é que não existe doença que afete apenas as pessoas com um peso maior. Pessoas de todas as formas e tamanhos são afetadas por esses problemas de saúde.

Por ser multifatorial, a obesidade deve ser redefinida, principalmente quando sabemos que a primeira causa de morte entre os obesos não é o peso, não é o IMC, não são os supermercados, mas a gordofobia. A ansiedade causada pela rejeição e o estigma gerado causam inflamação e aumento da adiposidade. É a reação dos outros que aumenta a ansiedade e coloca as pessoas em uma  roleta russa.


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