Os monstros da razão: a psicologia das pinturas negras de Goya

Saturno devorando os seus filhos, El aquelarre, Duelo a garrotazos... As pinturas negras de Goya continuam nos estremecendo. O que o levou a criar essas obras tão truculentas e, ao mesmo tempo, misteriosas? O que pensava o mestre aragonês?
Os monstros da razão: a psicologia das pinturas negras de Goya
Valeria Sabater

Escrito e verificado por a psicóloga Valeria Sabater.

Última atualização: 15 novembro, 2021

A psicologia das pinturas negras de Goya continua sendo um enigma. Esse conjunto de pinturas misteriosas e truculentas que decoravam a Quinta del Sordo foi criado através de uma cosmogonia única, produto de uma mente cansada, às vezes desesperada e determinada por um contexto histórico marcado pela repressão.

Agora, o tormento sofrido por Francisco de Goya era o resultado de algum distúrbio psicológico? Ou foi talvez o resultado dessa pátina desesperada que a idade lhe trouxe, a surdez e a violência de uma Espanha conturbada? Talvez tenha sido a combinação de tudo isso. Não podemos ignorar como funciona o universo criativo de todo artista: os infortúnios da vida se refletem em todas as telas e até na escolha das cores.

Os catorze trabalhos que compõem as chamadas pinturas negras representaram uma mudança notável em sua carreira. Ele foi da luz para a sombra; era o mestre da cor e acabou morando em uma casa onde a escuridão manchava as suas paredes. Ele, que fora o pintor de retratos mais destacado da sociedade espanhola, acabou decorando a sua casa com rostos deformados, burlescos e demoníacos.

Essas figuras talvez servissem para expor os seus sentimentos, pensamentos e todos os horrores vistos no passado. Assim, quase sem saber, Goya anteciparia a pintura contemporânea. Essa deformação intencional e essa tonalidade em que vibrava a escuridão de uma alma atormentada deram lugar ao expressionismo.

Francisco de Goya de Vicente López Portaña
O pintor Francisco de Goya de Vicente López Portaña

Psicologia das pinturas negras de Goya

Vermelhão de mercúrio, auripigmento, branco chumbo, carvão vegetal negro de madeira de videira, azul da Prússia e vários tipos de ocre. Estes eram os pigmentos que o próprio Francisco de Goya preparava e foram usados para criar esses trabalhos a partir da Quinta del Sordo. Graças a diversos documentos históricos e testemunhos da época, sabemos até onde as pinturas ficavam expostas.

No andar de cima estavam Dos forasteros, O Santo Ofício, Asmodea, Um perro e dos Brujas, Átropos, Dos hombres e Dos mujeres. As mais escuras e impressionantes foram, curiosamente, feitas na sala de jantar, localizada no térreo e usada para eventos sociais. Ali estava Saturno, La romería de San Isidro, El gran cabrón, La Leocadia, Dos viejos, Judith e Holofernes.

Ele não se importou muito com o fato de as poucas visitas que ele recebia terem ficado chocadas com essas imagens. Nem que isso pudesse ser denunciado. Não podemos esquecer que Goya sempre foi um personagem incômodo para a Inquisição, para toda instituição eclesiástica que via em sua pessoa um artista que não hesitava em retratar as perversões daqueles que abusavam do poder.

Um dos objetivos da psicologia das pinturas negras de Goya é saber o que o levou a pintá-las. Não apenas nos perguntamos sobre o seu estado mental, se ele tinha ou não algum distúrbio. Uma das dúvidas é se ele as pintou por pura necessidade emocional, por simples prazer ou se queria deixar algo para a posteridade (e especificamente para o seu neto, a quem deixou a Quinta del Sordo).

Vamos analisar alguns aspectos do seu trabalho para compreender o seu mundo interior.

O sonho da razão produz monstros: a síndrome de Susac

Para entender o Goya das Pinturas Negras, é interessante falarmos primeiro sobre os Caprichos. Essas 80 gravuras já nos dão uma pista da mudança na vida do artista aragonês. Nesse momento, a sua doença autoimune já estava presente.

A síndrome de Susac se manifestou aos 46 anos, enfraquecendo a sua saúde física e psicológica. As dores de cabeça eram constantes, assim como as tonturas e os distúrbios visuais… Tudo isso criou um novo pigmento na arte do mestre aragonês: o da escuridão e da angústia.

Uma das sequelas neurológicas dessa doença rara foi, sem dúvida, a surdez. As suas faculdades sensoriais foram deformadas, perderam o brilho, luz, som, esperança… Igual àquela sociedade em que ele estava imerso. Os Caprichos foram a primeira abordagem até o inconsciente, até o seu mundo interno para capturar como ninguém o grotesco, o monstruoso, o fantástico…

Nestas gravuras, Goya nos trouxe o reflexo das superstições das pessoas simples da época, daqueles que acreditavam em demônios, bruxas e fantasmas… Criaturas noturnas que invadiam os sonhos e os pesadelos.

Saturno devorando seu filho
Saturno devorando seu filho

O delírio tremens de uma mente brilhante, mas doente

Em grande parte da obra de Francisco de Goya (1746-1828), habitam personagens perturbadores. Isso era o reflexo de algum transtorno mental? Em absoluto. Foi a criação excepcional de um artista que refletiu como nenhum outro a irracionalidade de uma sociedade degradada entre a qual ele próprio viveu… e que o deixou desesperado.

Poucas figuras da arte transmitiram tão bem o tormento interior, a solidão, o medo e o desespero. Quando Goya chegou à sua casa de campo “La Quinta del Sordo”, em sua mente ainda borbulhavam as lembranças, o som das execuções, a dor do exílio, a queimação da deslealdade… A psicologia das pinturas negras de Goya nos diz que o que o machucou foi a vida.

Como a Dra. Ronna Hertzano, da Universidade de Maryland, explica, a síndrome de Susac resulta em uma inflamação cerebral. Algo assim gera alucinações e pouco suprimento de sangue para os olhos e ouvidos. Daí a surdez, os problemas de visão, o sofrimento…

Conclusão sobre as pinturas negras de Goya

Nas Pinturas Negras não há luz porque não havia esperança para Francisco de Goya. Ele era um homem desesperado que sofria em um mundo igualmente caótico.

O seu “Saturno” devorando seu filho e”Judith e Holofernes” foram aquelas figuras mitológicas que Freud usaria mais tarde para as suas teorias. O registro simbólico dessas últimas obras nada mais representa do que o mais sinistro e o atávico do ser humano; o nosso lado mais sombrio.

Goya não fez nada além de se conectar com ele para moldá-lo. Ele foi o canal que nos trouxe a escuridão da nossa natureza, aquelas sombras que nem sempre gostamos de ver.


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