Senhor das Moscas: a alegoria da natureza do ser humano

Senhor das Moscas: a alegoria da natureza do ser humano
Leah Padalino

Escrito e verificado por Crítica de Cinema Leah Padalino.

Última atualização: 13 abril, 2023

Senhor das Moscas é a obra mais reconhecida do escritor britânico William Golding, publicada em 1954. Não alcançou grande reconhecimento na época de seu lançamento, mas passou a ser muito valorizado anos mais tarde ao se tornar um clássico da literatura inglesa do pós-guerra. Já foi inclusive transformada em filme duas vezes, nos anos de 1963 e 1990.

Trata-se de uma alegoria da natureza humana, em que cada personagem representa um aspecto importante das pessoas. Explora a criação de uma sociedade a partir de um ponto zero por um grupo de crianças. Como os papéis são definidos? Como se escolhe um líder?

A trama começa quando um avião, cujos passageiros são todos crianças, sofre um acidente perto de uma ilha deserta. É nesse contexto que os sobreviventes devem se organizar para poder sobreviver e tentar ser resgatados. Em uma ilha, no meio do nada, onde não existem quaisquer regras, um grupo de crianças funda uma nova sociedade. Ao longo do livro vamos descobrindo como a maldade pode nascer em qualquer pessoa, não importa sua idade. Senhor das Moscas é uma viagem em direção às possibilidades da maldade humana e todas as faces que o ser humano pode ter.

“A gente nunca é exatamente do jeito que alguém acredita que somos”.
–Senhor das Moscas– 

Crianças, líderes e alegorias

O próprio título da obra é, em parte, alegórico, pois alude à figura do Belzebu, à figura do mal. Encontramos a imagem do mal na história na cabeça de javali que as crianças colocam erguida em uma lança: a cabeça, em estado de decomposição, acaba rodeada por moscas.

Ao chegar à ilha, as crianças se unem com a esperança de sobreviver e de serem encontradas o mais rápido possível, demonstrando que o ser humano é de fato sociável por natureza. Talvez condicionados pela sociedade em que tinham crescido até então, talvez pelo medo e pelo instinto natural de sobrevivência do homem, as crianças decidem escolher um líder e fazê-lo de forma democrática. O líder é Ralph, que não é uma criança mais inteligente que as outras, mas é mais ágil, forte, e desperta confiança nos demais.

Concha enorme na praia

O que poderia ter sido uma oportunidade para desafiar as ordens impostas pelos adultos, para demonstrar que as crianças podem ser mais justas e racionais, acaba virando uma verdadeira catástrofe. Desde o momento em que o líder é eleito, já começa a existir rivalidade, e então nasce o ódio que conduzirá a uma trágica e descontrolada situação. Sem adultos, sem leis, são eles mesmos que decidem:

  • Ralph: é o líder eleito pelo resto das crianças. Representa a democracia e suas intenções são boas. Ele quer que as crianças permaneçam unidas, e então decide manter uma fogueira acesa com a esperança de serem vistos e resgatados. Apesar de suas boas intenções, sempre consulta a opinião de outro personagem, Piggy, e acaba perdendo o controle e a liderança.
  • Jack: ele é a contraposição de Ralph, sendo outro líder nato, porém mais autoritário. Ele é o maior do grupo e fica incomodado ao não ser escolhido líder, após a vitória de Ralph. Sua atitude é arrogante e pessimista, ele perde a esperança em ser resgatado e pouco a pouco vai caindo na irracionalidade. Ele fica cada vez mais violento, gerando medo nas outras crianças, e com esse modo faz com que elas se unam a ele.
  • Piggy: seu nome significa “porquinho”, e ele é alvo de bullying pela sua aparência e por ser asmático. É, no entanto, um das personagens mais inteligentes e representa a racionalidade na história. Por suas outras características e suas condições físicas debilitadas, porém, ninguém o escolheu como líder. Apesar disso, Ralph confia plenamente nele e sempre pede sua ajuda e sua opinião.
  • Simon: assim como Piggy, ele não tem boa saúde. É uma criança reservada, vista como estranha, mas mostra uma grande sensibilidade, especialmente com os animais. Esse personagem é muito revelador, descobre o senhor das moscas e acaba sendo a figura do “portador da verdade”.
  • Roger: é um das personagens que apresenta maior mudança na história, ficando do lado de Ralph desde o começo e convertendo-se no braço direito de Jack até o final. Roger parece uma criança tranquila e tímida, mas logo descobre uma outra faceta de si mesmo: ao ver que não existem leis e que seus atos não serão condenados, ele adota a violência.

Essas crianças estabelecem uma hierarquia, uma ordem inspirada no mundo que conhecem, mas que será corrompida e levará à radicalização. Diante do medo, ninguém precisa de um lidar racional, só de um líder forte que assegure tranquilidade e alimento a todos.

“O que é que somos? Pessoas? Animais? Selvagens?”
–Senhor das Moscas– 

Índios ao redor de fogueira

A natureza do mal em Senhor das Moscas 

Senhor das Moscas pretende dar uma contrapartida para a teoria de Rousseau, que dizia que o homem em seu estado natural era bondoso e não conhecia a maldade, sendo a sociedade a responsável por corrompê-lo e convertê-lo ao mal. No livro, ocorre justamente o contrário. As crianças são livres, encontram-se em um estado totalmente natural e, mesmo assim, ao não existir uma sociedade, ao não existirem normas, deixam-se levar por sua natureza do mal e agem de forma totalmente irracional.

O outro lado da moeda seria Hobbes, que defende que a sociedade regula a maldade do homem. Ela faz com que nos comportemos como seres racionais. Nesse ponto é que estaria situada a obra de Golding, que apesar de ter tentado eleger um líder e estabelecer uma sociedade, mostra um grupo de crianças que não pode evitar sentir que enquanto estão livres na ilha, não precisam obedecer nenhuma regra.

Vemos que, a princípio, as crianças tratam de imitar o comportamento do mundo que já conheciam antes, o mundo dos adultos. Encontram uma concha na praia, e a convertem até num símbolo da democracia que é usado para ceder a palavra aos outros. Eles se organizam para manter a fogueira acesa, para conseguir alimentos e trabalham juntos, mas logo toda essa utopia democrática vai por água abaixo.

Algumas crianças acham que a ilha é um lugar dos sonhos, sem pais, sem professores… Por que então obedecer ordens? Por que se comportar de acordo com as regras? Os líderes têm um papel crucial, e as crianças vão escolhendo a quem querem se unir até que eclode uma guerra entre os dois grupos.

Os rumores de que uma besta habita a ilha fazem com que todas as crianças tenham medo e apoiem aquele que parece mais forte; outros acabam vendo a liberdade e o poder alimentando seus instintos mais selvagens. Assim, a ilha que no começo era paradisíaca, acaba se tornando um verdadeiro inferno repleto de destruição.

“É nossa ilha, podemos nos divertir até que os adultos venham nos buscar”.
–Senhor das Moscas– 

Senhor das Moscas

Senhor das Moscas e suas reflexões

A obra não fala apenas da natureza humana, ou da perda da inocência da infância, fala também da organização de uma sociedade. A seu modo, as crianças criam uma nova ordem hierárquica do zero, na qual podemos ver diversos papéis que facilmente nos recordam pessoas do mundo real.

As crianças vão se dividindo, assim como ocorre no nosso mundo, por causa de ideias políticas, e até se enfrentam em uma guerra em que a racionalidade é deixada totalmente de lado. Não premiam a inteligência, não buscam um líder que segue a razão. Querem um líder forte que os proteja de seus medos custe o que custar.

Tudo isso nos lembra muito o mundo tal qual o conhecemos, o modo como escolhemos nossos líderes e vivemos nossas vidas. Inclusive, nos faz perguntar se a democracia realmente existe, ou até mesmo se ela é possível. Entendendo como democracia esse mundo no qual todos devem ter voz, essa utopia que inicialmente existiu para as crianças e eles mesmos acabam a destruindo, é possível se identificar e perguntar se no mundo real não aconteceu a mesma coisa.

“Vocês tem que entender que o medo não pode trazer mais danos que os sonhos”.
–Senhor das Moscas– 


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  • Golding, W. (2019). El señor de las moscas. Alianza Editorial.
  • Martínez Campos, C. G. (2017). Análisis pedagógico de El Señor de las Moscas.
  • Gómez, J. L. R. La territorialización del miedo en El señor de las moscas (caso Piggy). Jornadas de Reflexión Filosófica.
  • Lorenzo Martínez, I. (2022). Liderazgo, trabajo en equipo e individualismo en la novela” El señor de las moscas”.

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