O sobrediagnóstico na saúde mental: como e por quê?
O fenômeno do sobrediagnóstico na saúde mental tem relação com a tendência de tornar patológicos comportamentos que são normais e envolvem apenas um mal-estar que não pode ser classificado como um transtorno. Isso acontece dentro da psiquiatria e não gera apenas diagnósticos errados, mas também o uso de medicações quando estas, na verdade, não são necessárias.
O diagnóstico é, há muito tempo, um dos aspectos mais problemáticos da psiquiatria. Isso se deve a vários fatores. Um deles é que muitas vezes o diagnóstico é muito subjetivo, já que é o psiquiatra, com base na sua observação e com instrumentos inexatos, que determina se uma pessoa tem ou não um transtorno. Nessas condições, é muito comum que haja erros, o que por sua vez conduz a um sobrediagnóstico.
O instrumento mais aceito como referência é o Manual Diagnóstico e Estatístico dos transtornos mentais (DSM, na sua sigla em inglês). Este, por sua vez, é feito por um grupo de psiquiatras, quase todos norte-americanos. A definição dos transtornos e sua inclusão ou não no manual é feita por votação. Sua primeira versão incluía apenas 60 transtornos. A última tem mais de 500.
“Aquele que só sabe medicina, nem medicina sabe”.
-José de Letamendi-
Existe um sobrediagnóstico no campo da saúde mental?
Tudo indica que sim, há um sobrediagnóstico no campo da saúde mental. Se olharmos para a última versão do DSM, os especialistas dizem que poderíamos enquadrar 70% da população em algum transtorno mental e que, portanto, esses 70% teriam que receber algum tipo de medicação.
O DSM-V inclui alguns supostos transtornos que foram severamente questionados, inclusive por profissionais. Por exemplo, há um distúrbio denominado “Síndrome psicótica atenuada”. O DSM diz especificamente que “Essa síndrome caracteriza-se por sintomas do tipo psicóticos que estão abaixo de um limiar para psicose plena”.
Isso seria como dizer que alguém possui características que o fazem ter uma alta possibilidade de desenvolver psicose no futuro. Não há psicose no momento, mas mesmo assim a pessoa tomaria antipsicóticos.
Na verdade, todos nós poderíamos ter essa doença. A maioria de nós já passou por alguma situação na vida em que ficou “a ponto de ficar louco”, mas nada aconteceu. Tratar um transtorno que poderia surgir no futuro – ou não – é absurdo. É como dar medicamentos de hipertensão para o filho de um hipertenso, porque essa pessoa tem um risco de desenvolver a mesma doença.
Outro exemplo, dos muitos que podemos dar, é que, pelo DSM-V, se uma pessoa se sente extremamente triste por mais de uma semana, após a morte de alguém amado, essa pessoa pode ser diagnosticada com depressão.
Um mal-estar ou um transtorno
Os limites entre saúde e doença no plano da mente não podem ser definidos de forma muito precisa. Temos que entender que o “normal” é um conceito muito subjetivo e associado geralmente a um contexto específico. Também é necessário lembrar que é próprio do ser humano ter algum grau de mal-estar, porque viver é transitar pela incerteza.
Nunca obteremos tudo aquilo que desejamos, e também nunca alcançaremos um equilíbrio perfeito. Também há um grau de mal-estar que existe dentro de cada um de nós por causa da existência da morte, e esta é uma imposição brutal. Ninguém escapa de pelo menos uma dose de frustração diante de circunstâncias que não podem ser modificadas, e todos têm algum grau de egoísmo ou maldade dentro de si.
É razoável que vivamos algumas fases nas quais sentimos tristeza, ou então outros momentos marcados pela ansiedade. Para alguns psicanalistas é perfeitamente normal que tenhamos até três episódios de psicose ao longo da vida se nos virmos diante de algum gatilho específico. Por isso, talvez o manual esteja abordando como transtornos diferentes sentimentos que são perfeitamente normais e, por isso, esteja gerando um sobrediagnóstico no campo da saúde mental.
Como abordar o mal-estar e o transtorno
Até pouco tempo atrás, situações como o luto pela perda de um ente querido eram superadas com o apoio e o acolhimento do ambiente imediato da pessoa que sofreu a perda. A família e os amigos ajudavam a pessoa a lidar com esse mal-estar, compreendiam como normal que houvesse um tempo de sofrimento e este era aceito e tolerado. Hoje em dia, esses mecanismos de apoio estão cada vez mais fracos.
Atualmente, é muito mais difícil expressar a dor emocional e, com frequência, quem a sente se vê sozinho para lidar com a situação. Além disso, sob a premissa de um ideal de estar bem em todos os momentos, muitas pessoas nem sequer se permitem sofrer. A saída, então, é apelar para remédios que o psiquiatra pode receitar em um estalar de dedos.
O medicamento cumpre a função de, bem ou mal, ajudar a gerir o mal-estar individual e coletivo. O sobrediagnóstico é uma realidade produzida pelos dois polos da relação. De um lado, estão os psiquiatras ortodoxos, que só sabem lidar com pacientes oferecendo diagnósticos e intervenções rápidas por meio de medicamentos. Do outro, está quem sofre e se nega a entender sua dor. Dessa forma, a pessoa pede uma substância que ajude a levar a dor embora.
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Bianco, A., & Figueroa, P. (2008). Sobrediagnóstico, derechos vulnerados y efectos subjetivos. Ethos educativo, 43, 64-79.