Como surgiu o mito da metade da laranja?
O mito da metade da laranja é uma crença profundamente enraizada em nossa sociedade que sugere que cada um de nós tem um parceiro ideal destinado a completar seu ser. Dessa forma, pareceria indicar que a verdadeira felicidade só é possível através da busca por essa metade ou alma gêmea.
Para entender a origem deste mito devemos remontar à Grécia antiga, especificamente ao diálogo de Platão: O Banquete. Ali se investiga a natureza do amor e são propostas diferentes histórias que explicam o comportamento dos amantes e, entre eles, o da outra metade. Continue explorando o tema junto com a gente.
Aristófanes e o mito da metade da laranja
Em O Banquete, Platão relata os ensinamentos de seu mestre Sócrates sobre a natureza do amor por meio de uma série de discursos. Cada um dos falantes desse diálogo começa com um elogio a Eros, o deus do desejo, de onde vem a palavra “erótico”.
Entre essas falas está a de Aristófanes, que expõe uma lenda mitológica para tentar explicar a dinâmica do amor de casal e a busca constante por um outro que nos complete.
Segundo Aristófanes, em um passado remoto, os seres humanos eram completos e poderosos, redondos, com quatro braços, quatro pernas, dois rostos e uma única cabeça. Tais criaturas poderiam ser compostas por dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher (esta última chamada de andrógina).
Embora fossem seres que governavam a terra, sua queda começou quando eles desafiaram os deuses e tentaram subir ao céu para combatê-los. Diante dessa rebelião, o rei dos deuses, Zeus, decidiu enfraquecer a força dos humanos dividindo-os em dois.
Dessa forma, cada metade ficou incompleta e ansiava por se reunir com sua parte restante para recuperar sua unidade e integridade primordial. Aristófanes conta que quando encontravam a sua metade, davam fortes abraços para tentarem unir-se novamente, embora sem sucesso. Portanto, o amor constitui o desejo e a busca dessa integridade perdida.
O papel do mito na Grécia antiga
Os mitos tiveram um papel fundamental na Grécia antiga ao transmitir valores culturais e dar sentido ao mundo. Como em outras culturas, eles foram usados para explicar os fenômenos naturais e a origem do universo e dos seres humanos.
O mito da metade da laranja de Aristófanes segue uma estrutura básica de muitas lendas gregas da criação, nas quais os humanos são punidos por Zeus após cometerem alguma ofensa relacionada, geralmente, ao orgulho e à ânsia de poder.
É importante enfatizar que os gregos não viam os mitos como histórias fixas e imutáveis, mas que podiam ser modificados para transmitir ideias específicas. Estes foram apresentados como fonte de inspiração e reflexão filosófica.
Ainda há debates sobre se os gregos acreditavam em mitos ou os usavam como meio de expressar suas ideias. Platão é um claro exemplo deste último caso, pois, em seus diálogos, utiliza os mitos como complemento de seus argumentos reflexivos.
A resposta de Sócrates ao mito da metade da laranja
O último a apresentar seu discurso em O Banquete é Sócrates, que desenvolve as ideias da sacerdotisa Diotima, que, segundo seu relato, foi sua professora. Nesse contexto, defende-se que o amor não se reduz à simples procura do outro, mas implica encontrar o belo.
Segundo os gregos, a beleza estava ligada tanto à harmonia e à proporção quanto à virtude e à perfeição moral. A busca do amor é um caminho de ascensão para a beleza. E como aponta um artigo da revista Lógoi, para os gregos, o bom e o belo eram dois aspectos de um mesmo fenômeno.
Dessa forma, o amor nos completa, mas não por meio de outro corpo, e sim pelo sentimento da beleza, que enche de felicidade quem a busca. Nesse discurso, o maior dos bens é a sabedoria. Nesse sentido, os filósofos são aqueles amantes inveterados da sabedoria que, embora nunca alcançada, os guia por esse impulso inesgotável.
O mito de Diotima
Embora a fala de Diotima também exponha um mito, ele se apresenta como o único possuidor de uma tese filosófica. Ao contrário do resto, Eros, o deus do desejo, não é representado como o mais belo, diz-se mesmo que não é um deus, mas um mediador entre os seres humanos e os deuses.
Segundo o mito de Diotima, Eros foi concebido durante uma festa pelo nascimento de Afrodite, a deusa da beleza. Durante a festa, estava Poros, que representava os recursos e era filho de Métis, a prudência.
Depois que todos terminaram de comer, Penia, a personificação da pobreza, apareceu para mendigar. E vendo que Poros adormeceu embriagado pelo néctar, aproveitou para deitar-se ao lado dele e assim conceber Eros.
“Por sua natureza [o desejo] não é nem imortal nem mortal, mas no mesmo dia às vezes floresce e vive, se tiver abundância e recursos, e às vezes morre e volta a reviver”.
A natureza do desejo
Portanto, Eros, o desejo, está relacionado à beleza, visto que foi concebido no nascimento de Afrodite. No entanto, tem uma natureza contraditória. Por causa de sua mãe, Penia, sempre sofre com a falta e anseia pela beleza; e por causa de seu pai, Poros, persegue os bons e possui recursos.
Assim, abre-se a porta para pensar na dupla natureza do desejo, que nunca é pobre nem rico, embora tudo o que se busca escape de suas mãos.
Sempre que um desejo é realizado, um novo aparecerá para reavivar o desejo. Da mesma forma, o desejo está entre a sabedoria e a ignorância e reflete a atitude filosófica da busca constante pela verdade. Basta lembrar a famosa frase atribuída a Sócrates: “Só sei que nada sei”.
Convidamos você a ler O mito de Eros e Psiquê
Revisitando o mito da metade da laranja
Embora o mito da metade da laranja pareça ter um grande impacto na cultura popular, a visão de que somos seres incompletos que devem buscar nossa parte perdida tem vários inconvenientes. Colocar a fonte de nossa plenitude em uma única pessoa é perigoso para nossa integridade emocional.
Pode acontecer que essa pessoa saia ou morra ou podemos ficar sozinhos sem nenhum parceiro. Se pensarmos que outra pessoa é necessária para alcançar o equilíbrio e a felicidade, podemos ser seriamente afetados por essa situação.
É verdade que o parceiro pode ser fonte de realização e crescimento, mas isso deve acontecer entre duas pessoas completas, num vínculo baseado na complementaridade mútua e não na dependência. Um par é um conjunto de dois elementos que possuem alguma correlação ou semelhança entre si, não duas metades do mesmo elemento. Um casal é formado por duas laranjas inteiras.
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